Por dentro de: Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua



Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua extrapola os limites da paixão, de seus significados, iconografias e muito, muito mais ao transformar o conturbado em simples e incandescente.

O que falar de Ana Frango Elétrico? Um ato da música brasileira que surpreendeu a todos com seu segundo álbum de estúdio, Little Electric Chicken Heart, notado pelos brasileiros e mundo afora, em maior parte, devido ao crítico estadunidense Anthony Fantano ter dado um grande destaque ao disco, fazendo com que este chegasse a aparecer em seus destaques gerais e do ano.

O LP cativava pela sua eclética lambança de gêneros da música brasileira que tiveram seu auge há algumas décadas, usando do anacronismo para criar algo totalmente singular e impossível de se replicar sem Ana por perto. As músicas tinham uma performance apaixonadíssima — contudo, sinuosa pela voz leve como papel da cantora — enquanto seus instrumentais combinavam apenas o que tinha de melhor naqueles gêneros, sempre no jeito mais imaginativo possível.

Capa do álbum "Little Electric Chicken Heart".


O trabalho de Ana em LECH é diferente, para dizer o mínimo. De seu visual anormalmente comum e estranhamente minimalista até sua certa preferência por uma luxuosidade quebradiça nas paisagens sonoras, nele permeia um clima constante de que algo não está certo. As bases de sua personalidade cativante e jeito despreocupado, mas bem fundamentado em suas origens, de tratar o passado da música brasileira se formaram nesse jeito esquisito de ser, de uma extravagância ovacionada pela própria artista como reimaginação envolvente do que foi essa mesma música brasileira. Encanta – e muito – por ser tão especial mesmo que facilmente reconhecível… mas sempre faltou algo a mais: um propósito.

As músicas de LECH são testes estrambóticos com vontades místicas e lustrosas que formam um resultado hipnotizante, vibrante e ébrio, mas nunca perdendo a acessibilidade. Entretanto, é um tipo de arte pela arte que, se não tivesse uma execução tão primorosa, certamente cairia nos braços da confusão e se agraciaria nas águas do desinteresse.

Faltava uma finalidade a se alcançar nas músicas, que — a não ser algumas exceções como “Saudade”, “Promessas e Previsões” e “Chocolate” — estavam muito aquém da realidade, vagando sem bússola num mar de estrelas, como se sem propósito. Isso não é necessariamente um ponto negativo, mas algo mais coeso em tema e mais desprendido em sua pretensão instrumental parece casar em contraponto perfeitamente com o escrever poético da artista.

Bem, é isso que recebemos em Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua.

Antes de prosseguir com esse especial, primeiro tenho que responder a pergunta: o que exatamente é isso? Não tenho forma melhor de descrever esse texto do que apenas uma simples redatora não conseguindo conter suas milhões de sinapses sobre um álbum exclusivamente na sua cabeça. É a expressão máxima do que sinto sobre um projeto, seja ele muito ruim — como já fiz com Escândalo Íntimo — ou muito bom — como já fiz com o novo do FBC, por exemplo. Resumindo e não sendo pedante, é uma análise perspicaz de todas as reflexões que um disco me traz, faixa por faixa, ou uma vista desnecessariamente chique nos pormenores mais tocantes ou conflituosos que um álbum pode oferecer. Caso não tenha o tempo ou disposição para ler tudo, há uma versão resumida (ou melhor, uma review normal) disponível como adição desse especial, clicando aqui.

Enfim, comecemos.

“Electric Fish”, faixa de abertura do disco, é uma música de Boogie, ou seja, uma combinação da amada música Disco com um suculento Synth Funk e R&B-ismos dados por Michael Jackson. Você deve reconhecer as músicas mais Disco de Tim Maia e Marcos Valle, grandes representações do Boogie no Brasil com “O Descobridor Dos Sete Mares” e “Estrelar”, que são canções bem singulares, afinal, o gênero embalou junto e se recombinou geneticamente com a onda do sophisti-pop/city pop dos anos 80 aqui do Brasil, década representada com exatidão por Ana Frango Elétrico nesse álbum.

Capa de Marcos Valle (1983), maior disco do Boogie do Brasil.

O baixo pujante de Alberto Continentino em comunhão com uma bateria suavemente dilacerante dá abertura a um dos melhores grooves do ano, tão imediatamente reconhecível e robusto que qualquer resquício de seriedade e desalento são subitamente sugados tal qual um aspirador de pó — um dos bons. A guitarra no estilo Nile Rodgers mais dançante possível recebe muito bem a voz almofadada e corrosiva de Ana, cantando em inglês simplesmente porque ela pode, pois ninguém irá impedi-la. A qualidade inconfundivelmente cáustica no tom de Ana, ironicamente, confunde; elu sempre teve um registro único na sua versão flutuante da performance Pop, mas nada se equipara ao quão rubro o rasgar de sua garganta se mostra nessa sinestesia vocal — é maravilhoso.

O pré-refrão muda a linha de baixo com maestria, nunca largando o groove impecável já estabelecido nos 5 primeiros segundos de obra-prima, e ainda direcionando como um manual de instruções o destino do refrão.

Agora, me dêem liberdade para uma rápida digressão. Algo que muitos escritores modernos têm esquecido é o quão catártico os refrões numa música pop deveriam ser, tanto que uma praga que infesta a música Pop desde os anos 2000 é a construção de músicas em cima de um refrão simplório e romantizado, preguiçosamente escrevendo ideias piores a uma abstração inicial que não tem sensação de alívio nenhuma por ser essencialmente sem sabor. Isso evoluiu na atualidade na já batida estruturação porca de músicas feitas para bombar no TikTok, em que um snippet que deu certo precisa ser transformado numa música de 1:40 minutos com versos de 10 segundos e 4 refrões repetitivos e nada interessantes... esse desânimo dos artistas Pop atuais em escrever algo realmente satisfatório é muito exaustivo.

Bom, ainda bem que Ana sabe escrever um refrão como ninguém, sem nenhuma preguiça.

O refrão é vibrante, colorido, livre, festejante e principalmente: recompensador. Não há sensação melhor que estar apenas ressonando com o ritmo do baixo, apreciando o canto de Ana e ansiosamente esperando para esse delirante refrão tomar conta dos seus ouvidos. Ele te força a pelo menos querer cantar, tanto por seu absurdismo convidativo quanto por sua melodia sedutora, terminando enfim numa extensão de trombone belíssima, até que tudo se repete e nada além do sorriso no seu rosto sobra.

Por último, é claro que a sessão instrumental com o baixo, o trompete, texturas e etc. arrasa, como não arrasaria? Estamos tratando de Ana Frango Elétrico, e daqui para frente só melhora. É indiscutível, todo elemento adicionado aqui apenas contribui para a riqueza simplista de faixas de Boogie como essa. Até a metáfora indecifrável do refrão sobre, supostamente, amor e desgosto combina com essa renascença de um estilo tão específico, mas falsamente familiar por conta de uma nostalgia fabricada de tempos que nunca foram predominantes… é muito conteúdo para desempacotar em uma só música, uma das melhores do ano, diga-se de passagem.

Capa do single Electric Fish (musicão).

Após o gostinho que Ana nos deu com essa faixa — tanto como single principal quanto como faixa de abertura —, mil perguntas já brotam na cabeça. Cadê os tons dissonantes e cambaleantes de LECH? O resto das músicas vão ser de Boogie? Qual será a era na qual Ana vai desenhar sua caricatura, os anos 80 como um todo? O anacronismo abstrato vai se apresentar apenas pelas letras espalhafatosas ou há uma outra cobertura geral? Por que o título do álbum é esse? Deveria eu esperar mais quitutes doces com grooves de Funk? Essa qualidade vai se manter pelo resto do disco?

A única certeza que você precisa ter é que a última pergunta tem um sim como resposta.

Percebe-se logo de cara que a estética e atmosfera de Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua são radicalmente diferentes da de LECH ou da de Mormaço Quente. É um álbum que, de certa forma, de algum jeito, minimamente que seja, relembra uma caricatura extremamente cartunesca da música ora cafona ora reflexivamente urbana dos anos 80 no Brasil.

As guitarras e ritmos boêmios do álbum antepassado saem dos holofotes para dar palco a baixos contratualmente contagiantes e seções orquestrais comprometidas a se sofisticar ao máximo. Isso se opõe à personalidade ainda bizarra de Ana que, ao menos na minha opinião, forma uma composição de cenário muito mais sincera e espontaneamente magnética do que seu antecessor. Suas raízes serem uma aglutinação de elementos essencialmente contradizentes tem como gênese irrevogável o desconcerto, o que é um conceito puramente fascinante que não precisa de pós-processamentos de percepções para se efetivar, qualquer movimento nessa lógica já sai como brilhante por si só. Isso encanta qualquer um.

Voltando às músicas, “Dela” abre bem com as passagens vocais inesperadas de JOCA, fazendo graça com uma certa cafonice e diversão descomprometida ao repetir alguns pronomes possessivos, já indicando o tema da música. Ana e sua voz tão lisa quanto as costas de um camarão rapidamente adentram em seguida, de forma a unificar os sintetizadores hipnóticos ao ritmo de Funk da faixa. A característica mais emblemática do registro é o quão apartado seu ritmo é, recordando uma espécie de Jazz que só músicos experientes no gênero conseguiriam deixar tão explícito nas entrelinhas, conciliando com exatidão o fragmentado com o dançante, sem nunca afetando a alta acessibilidade do groove.

Seja a linha de baixo relutante, o baterista magnífico, os sintetizadores semipsicodélicos ou as guitarras límpidas, Ana atua como um chiclete requintado e faz toda a complexidade ao seu redor servir ao seu favor. É um daqueles casos em que quem aprecia algo mais bem elaborado e pessoas que só querem dançar têm o prato cheio na mesma música.

Em uma nota mais particular, a única participação especial do disco é JOCA, e felizmente tudo funciona quando ele entra em cena. Ambos já fizeram parte de um projeto musical chamado Almoço Nu, sendo o rapper um dos expoentes nesse tal cenário de pós-MPB que logo mais se tornará tão queridinho quanto Ana e seus companheiros dessa nova era da música brasileira — uma aposta bem alta, mas não custa sonhar. Enfim, a música muda completamente às raízes Boogie do projeto para receber um verso repleto de carisma e esplendor, em modo anacrônico ao hip-hop infusionado com disco dos anos 80, sucedendo em quesitos estéticos e substanciais.

Todavia, a função mais importante dessa faixa ao álbum geral é a lírica.

"Quem eu era? / Eu era algo em torno dela, dela / Das voltas dela".

A repetição contínua dessas lamúrias meditativas passa a óbvia mensagem de possessão e despersonificarão do eu lírico. Os versos expõem uma perda da própria identidade que passa despercebida pela autora numa transitoriedade surpreendente, em que a própria face se desprende do rosto ao orbitar a conceitualização de uma paixão romantizada. O tema é universal. Criar uma certa dependência emocional em amores translúcidos já foi abordado por uma quantidade monumental de cantores, inclusive nos anos 80, mas o que torna esse registro especial, então?

É o fato de Ana ser gay.

 Conspiração da Teoria, de Almoço Nu.

Em um panorama mais afastado, essa música revela uma face — aliás, talvez a mais importante — desse momento ímpar na discografia de Ana: a temática principal é o amor não-binário.

Elu percebia, desde o começo da formação dos amontoados de admiradores que atraía, que o demográfico dos não binários e LGBTs pouco se expressava. Ana nunca teve a intenção de ser uma artista que mascara quem é para atingir públicos específicos, não, ela é autêntica, vai pelo retorno e segue pela rota contrária. Sua verdadeira intenção é de atrair o maior número possível de não-binários, quase como se sua música fosse um lugar seguro em meio a tanto infortúnio que demasiado assola os coitados. Bem, sem dúvida alguma algo que Ana fez foi espantar qualquer homofóbico com as letras dessas músicas. Entretanto, me aprofundarei mais nesse ponto conforme adentramos mais a fundo nesse álbum, até lá, desbravemos a participação de JOCA.

No geral, JOCA expande os horizontes da temática subjetivamente jogada ao ar por Ana em “Dela”. Há uma persistente fusão entre o eu lírico e seu amor, misturando o cotidiano da vida amorosa e confundido suas normalidades como ações individuais ou coletivas, e se são coletivas, até que ponto isso é bom ou romântico.

"Pus pra sair a melhor roupa que é minha / Inutilizável sem os olhos tão dela".

A melhor roupa sob a ótica de quem? O eu lírico ou a amada? Ambos? Não importa, ela se torna inutilizável a partir do momento que o reconhecimento de seu amor desaparece, fino no ar, onde a mais simples das coisas dependem inerentemente a aprovação de outra. Intrigante, é uma boa participação.

Indo à próxima faixa, “Nuvem Vermelha” aposta na faceta Baroque Pop do LP e é impossível de dizer que elu erra nessa. Tendo Dora Morelenbaum como maestrina, os arranjos orquestrais não podem ser descritos como nada além de deslumbrantes. O piano elétrico complementa muito bem a graciosidade imaculada das sessões de cordas, e, além disso, ambos preparam a trilha para o passeio impecável da voz de Ana — com suas notas melífluas e melosas — pela música como uma pluma de peso zero numa balança.

Os demais instrumentos entram após uma simples ponte, substituindo a glória da orquestra pelo groove de funk mais esmerado que já ouvi, tão doce quanto uma bala de iogurte. A progressão da faixa continua glamourosa sem nenhum esforço, intercalando os elementos do Baroque Pop já citado com o Funk e o Sophisti-Pop. Assim, Ana pinta paisagens bucólicas, puras, deleitosas e confortáveis, como planícies de mata verde em um dia lindamente nublado ou ruínas tomadas por vegetação em ambientes dignos de uma reimaginação ironicamente alegre de Neil Druckmann — algo que por mais simplório que pareça, impressiona facilmente com o nível de detalhe e bom envolvimento entre os membros da banda.

Mesmo tendo uma letra mais simples — e maravilhando pela sua universidade por meio de algo intrinsecamente pessoal —, essa é decerto uma das mais bonitas do ano, algo que Ana entregou mais duas vezes conforme passamos por Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua.

Capa de Arthur Verocai, uma das inspirações do disco e de Nuvem Vermelha.

Transicionando entre “Nuvem Vermelha” e “Boy Of Stranger Things” se situa “Coisa Maluca”, uma adição que escapa um pouco da sonoridade bem-acabada e polida para um Funk mais desengonçado e timbres mais brincalhões. A bateria eletrônica tem percussões patetas, bobas e gostosas — eu adoro — enquanto que a guitarra usa de seu primeiro grande destaque no álbum para simplesmente enlouquecer e fazer qualquer coisa que vem a sua mente, num timbre tão solene quanto um palhaço numa piscina de bolinhas.

É um interlúdio bem fofinho e que, por justamente não se levar a sério, ao seus um minuto e meio de duração já soa completo, pois de todas as ideias e elementos foram extraídos todo o potencial que tinham até aquele momento. Afinal, não tem como melhorar o canto vacilante e cintilante de Ana e das back vocals, nem as letras despretensiosas e cafonas fiéis a namorados indiscretos, assim já está bom. E, apesar de soar meio deslocada pela paleta sonora mais semelhante com a atualidade que o passado, a natureza desconvoluta da faixa lembra muito o tom de galhofa de alguns atos de pop rock dos anos 80/90 — a lá reimaginação de “Biquíni de Bolinha Amarelinha”, de Blitz (um hino) —, então continua firme na temática.

Capa de One Wayne G, de Mac Demarco, uma inspiração para Coisa Maluca.

Seguindo para uma das outras revelações do disco, “Boy Of Stranger Things” é a outra música cantada em inglês do álbum, essa tendo um bom motivo para o fazer. Tematicamente, ela desvenda a não-binariedade de Ana e a dificuldade de amar sendo uma pessoa dentro desse termo guarda-chuva. A comparação com o Mike de Stranger Things é uma piada comumente feita com sua imagem, uma que a artista utilizou perfeitamente em seu interesse próprio para exprimir sua semi-indignação com o tratamento errôneo que pessoas trans sofrem diariamente. Como sempre, Ana utiliza de suas experiências individuais de um jeito que alcança os corações de um grande contingente de pessoas — eu, pessoalmente, me conecto muito com a música e com a raiva velada exprimida por Ana sobre o desrespeito (intencional ou não) da minha identidade e tratamento de gênero.

E nossa, é realmente uma complicação incomparável amar sendo trans. A música capta muito bem, mesmo que sutilmente, o quão complicado é ter que se conhecer, se aceitar, juntar isso com a pressão externa — e transfobia — sob forma de julgamentos incessantes e ao mesmo tempo passar por um processo devastador de amor íntimo e romântico com uma pessoa aquém ou não dessa situação. É uma música muitíssimo catártica e libertadora em seu fim, em que Ana repete numa fúria até melancólica:

“I'm not the girl that you think / I'm not a girl / I'm not a girl / I'm not, not, not a girl”

Musicalmente, ela é tão espetacular quanto, potencializando, e muito, a mensagem dada pela artista. Além da melodia de assobio fofa e cativante, o casamento de todos instrumentos num groove tão bem definido facilita os detalhes de se mostrarem na passarela como beliscos deliciosos numa festa. Tanto a bateria quanto a guitarra e o baixo trabalham em união em um ritmo envolvente e atrativo como uma sopa básica, simples e deleitosa, mas que não brilha sem os temperos. Quais? Esses podem ser as back vocals com melodias viciantes ou trompetes/saxofones repentinamente contaminantes, ou até mesmo os vocoders que infestam a faixa em seu ápice de dança feroz e singela.

A progressão da música decorre despercebida, mas conforme passa mais energética e complexa ela fica, por meio de novos instrumentos, novos ritmos percussivos ou novas performances insanas — mesmo que estranhamente tímidas da cantora. É como se fosse um tornado que gradativamente cresce puxando tudo ao seu redor, com o ouvinte bem no centro de seu olho, observando toda a maluquice ao seu redor embasbacado, mas dançando que nem um desvairado.

Não é que elu parece o Mike mesmo?

Bem, mas e o tal do anacronismo que tanto se fala? Aos que não sabem, anacronismo é quando há uma utilização de objetos, conceito, eventos, costumes e etc. de uma certa época e determinado lugar em um contexto completamente diferente do original. Construir uma história sobre mecânicos automotivos na China Antiga é algo anacrônico, por exemplo. Alguns ainda devem conhecer Monty Python, cuja obra gira quase que por completo em torno de anacronismos e o quão cômicos eles podem ser.

O caso de Ana sempre foi o de utilizar elementos da atualidade em suas técnicas de produção ou interpretações contradizentes para transformar a música do passado do Brasil em algo refrescante e singular. Para a surpresa de alguns, as características anacrônicas dessa vez vão além de simplesmente ressignificar a música Boogie e o Sophisti-Pop brasileiros em um contexto atual e diverso; é de também representar a cultura LGBT e reivindicar espaços onde não-binários nunca tiveram a oportunidade de ocupar.

A comparação mais óbvia que Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua pode sofrer é com Rita Lee, o que não está errado, pois tanto Ana quanto ela são artistas que se aventuraram no Sophisti-Pop, principalmente sendo colocados sob os mesmos termos porque ambos são LGBT. Entretanto, é meramente desleal dizer que o que Ana faz é uma réplica da luta de Rita Lee e que só faz pintar um novo rostinho bonito no estilo em que a eterna Rita foi pioneira. O que Ana faz é por uma perspectiva inteiramente nova sobre os anos 80 como representação gay no tom mais aprazível e, sinceramente, lindo que alguém poderia dar.

É um exercício engenhoso de como essa música tão normalmente hétero e predominantemente feita pelas classes mais favorecidas pode virar contra si mesma para retratar o amor LGBT, glorificar o não-binarismo e exibir tanta intimidade e pessoalidade da vivência de uma gay simples e romântica. É lindo e caprichoso ver esse amor ser demonstrado como uma exposição de arte a céu aberto, para todos verem, inquestionável e sereno amor entre pessoas postas à margem da sociedade. Celebração em sua forma mais franca.

E por “Camelo Azul” ser a música que melhor faz isso , ela é a minha preferida do álbum — e talvez do ano.

“Camelo Azul” é uma música de Pop Tradicional. Sim, tradicional. Ana escolheu esse gênero a dedo para fazer sua música mais enaltecedora do amor LGBT. Claro que, para manter a coesão incrível do álbum, as demais influências de Jazz e Baroque Pop permanecem fortes e incluem incríveis texturas e reimaginações sutis de algo literalmente tradicional — bem que a Laufey podia aprender algo com isso, mas isso é uma discussão para outra hora.

Os arranjos orquestrais de flautas, clarinetas, violinos e violas feitos por Aline Gonçalves e Vovô Bebê são de outro mundo. Dá para evidentemente notar o amor em cada mudança de acorde e sentimento posto em cada nova nota em literalmente cada um dos elementos dispostos. O afago auditivo que os instrumentos cristalinos causa é uma sensação capaz de fazer qualquer um se sentir automaticamente à vontade ou boquiaberto. Os primeiros trinta segundos da música já são suficientes para saber o quão majestosa essa faixa será, um quão bem grande, diga-se de passagem.

A voz de Ana funciona perfeitamente como quebra gelo da introdução orquestral, confirmando claramente que todo anjo é não binário. Assim que a guitarra e as percussões cintilantes entram em jogo — sem contar o baixo vívido e sem igual — os sentimentos de pureza espiritual e luxo popular instantaneamente se instauram como água num papel toalha. A continuação dos arranjos magnânimos das flautas e violinos contribui distintamente para a construção da atmosfera ideal e perfeita. Não há nada que possa impedir a delicadeza máxima dessa faixa de se proliferar como pólen em qualquer um, e é notório que a sua progressão é esplêndida, tem algum cenário onde não seria?

Mas espere, como é a tal lírica da música e por que eu a amo tanto?

Camelo Azul, uma das melhores músicas de 2023. Ah, e marca de cigarro, claro.

 

"Não me olhe, não / Hoje não estou bonita / Dois beijos selam / Sua despedida fica".

Ao redor de inúmeras tragadas em camelos azuis, Ana utiliza seu registro de voz mais romântico para exaltar o cotidiano amoroso e na saudade crônica de um amor alcançável e ao mesmo tempo constantemente impossibilitado pela saída abrupta de seu amor.

"Seu cabelo brega / Sua jaqueta amarela / Me deixa transar / Com você".
Os pequenos detalhes, os mínimos dos minúsculos detalhes da pessoa amada são muito mais que marcantes para Ana; eles superam qualquer coisa na vida desse eu lírico perdidamente seduzido pelo seu amor. A súplica por sexo no final é melindrosa, coitada, tímida e ao mesmo tempo tão gritante, é quase um ato de deixar, de carinho, e é também a afeição mais cândida que elu pode requisitar de seu amor — é simples, mas empanturrado de simbolismo.

"Seu cheiro me lembra meu lado feminino / Mas hoje sou menino".

Essa é a parte mais importante da faixa e talvez do álbum. Expor claramente fora das entrelinhas o não binarismo numa música tão sofisticada e de gênero tradicionalista — inclusive, Aline Gonçalves é formada em música pela UFRJ, e sabemos bem o elitismo do ensino acadêmico da tal música erudita — é o ápice de tudo que a música de Ana pode chegar. É o anacronismo feito da mais bela das maneiras com a mais bela das vozes e a mais magnífica das instrumentações, sobre sexo. É a contradição máxima e o fantasioso eterno, é resplandecente e sexual, romântico ideal, combativo ao reacionário ao passo que reinterpreta o literal antiquado. Eu amo elu.

Prosseguindo com a tracklist, chega o segundo single do álbum, “Insista em Mim”, sendo a última música mais reflexiva e densa do projeto. O começo potente e um tanto épico da música sinaliza logo que essa é mais séria, focada e de maior escopo, que combinado com o título dramático torna o ar circundando a faixa muito mais pesado que o padrão do disco. É incrível como todos os instrumentos parecem ser o foco principal da música, sem uma preferência clara em um – todos chamam a atenção de diferentes maneiras. Na abertura, a bateria carrega uma espécie de bagagem, uma força que sabe prolongar batidas e posicionar fills perfeitamente; já o baixo tem uma das melhores melodias do projeto, acompanhando o trompete que limpa a passagem para finalmente os violinos brilharem, mas nunca roubando espaço dos outros elementos. O melhor começo do disco.

No momento que Ana entra o foco muda completamente, todo o direcionamento que devemos dar é a ela e sua voz, cada sílaba que sai dela. O baixo, a guitarra e a bateria assumem um papel extremamente importante na espetacularização do canto de Ana, que está tão maravilhoso quanto na faixa anterior — ou seja, no seu máximo de beleza.

"Eu amo sua voz / Seu quadril e sua boca em mim / Seus pais, seus irmãos / Tudo que faz você feliz".

As letras são simples, mas a forma com que Ana canta dá uma infinidade de contextos e profundidades em cada uma das palavras chave desse verso. Dá para sentir que quando elu fala que ama a voz da pessoa amada, não é apenas uma afirmação, é um sentimento vivo, intenso sobre todas as vezes em que ela ouve a tal voz. O toque do quadril e da boca não são apenas eventos isolados, são repetidas e repetidas vezes, marcando na pele de Ana todo o sentimento de amor que sentiu durante todos os momentos com sua paixão. E quando ela fala: "tudo que faz você feliz", ela realmente quer dizer isso; ela ama sem motivo algum — além de sentir uma paixão desnorteada — absolutamente e sem ressalvas tudo que faz a pessoa feliz, tudo, com intensidade máxima. Isso é lindo, não há outra palavra para expressar, é simplesmente lindo, mas acredite que melhora.

Na segunda parte do verso, as texturas assumem seus devidos lugares em parcimônia, como uma montagem de todas as formas do amor que Ana sente, cada um em uma exuberância distinta que representa por finalidade apenas o mais puro dos amores que elu pode sentir, todos diferentes, mas tendo a mesma consequência: paixão incandescente. Seu ápice (ou refrão para alguns) nos dá mais contexto por trás da lírica e sentimentos da artista nessa música, além, claro, de avançar a pompa dos instrumentais em uma forma que parece sem esforço algum.

“Pegue o que quiser de mim / Me plante agora em seu jardim / E se eu murchar, me regue / Insista em mim”.

É um clamor, quase uma oração. Ana em seu conteúdo lírico parece completamente desesperada, emocionalmente desamparada, sem esperanças. Passa por um imediatismo esquisito e por um abandono completo de suas competências como ser humano — ela vira objeto, pior, uma planta, um ser vivo estático que raramente consegue se defender do que farão com ela. Apesar disso, o tom em que elu canta isso é o completo oposto desse sentimento derrotista, não, é esperançoso, inocentemente esperançoso.

A perspectiva rotaciona por inteiro. Ana sabe que seu amor pode cuidar dela, cultivar uma afeição, um aconchego e por certo ela não precisa exatamente disso, mas certamente confia a tarefa de crescer em mútuo amor a pessoa que elu tanto admira e adora. Saber que alguém te conhece tanto e é tão exemplar, mas tão exemplar para você ao ponto de confiar completamente no poder de cura que essa pessoa pode conceder por pura boa vontade a ti é… muito tocante.

A música então desvanece como um sonho lúcido, cheia de arpeggios orquestrais que dão um quê de psicodelia ao produto final. Sem dúvidas é uma das músicas mais lindas que já ouvi nessa década, e sendo muito generosa, uma das mais lindas que o Brasil já ofereceu.

Capa do single Insista Em Mim (musicão).

Aproveitando o embalo dessa faixa e tudo de bom que ela tem a oferecer, um dos poucos importantes pontos desse álbum que ainda não mencionei é a sua complexidade reduzida ao simples e acessível. Por mais que Ana tente esconder isso — justamente por conta da acessibilidade —, é explícito o tanto de conhecimento e autoridade que ela tem sobre os gêneros que utiliza para criar suas simulações alternativas e anacrônicas. É de uma maturidade imensa saber comover com a trajetória da música brasileira (e geral em alguns casos) ao juntar as sensibilidades de cada pedacinho com a atualidade.

As progressões de Jazz que brotam durante o projeto não surgem do vácuo espacial, são minuciosamente posicionadas, mesmo que muitas pessoas não vão nem perceber o quão Jazz algumas das músicas aqui são. As maravilhas do Baroque Pop não são instrumentalizadas ao acaso, Ana escolheu a dedo o que do gênero elu queria pegar, como o gênero se apresentaria em algumas músicas e em como ele entraria em sintonia com o Sophisti Pop. Inclusive, ela não pega avulsamente um Sophisti Pop aleatório ou o confuso Sophisti/City Pop, não, é estrito o que sai e o que vem da obra de artistas como Marina Lima, Djavan e Rita Lee.

Não é qualquer elemento do Boogie que entra, as músicas não são Disco completo ou coloridamente bregas com progressões cansadas e previsibilidade máxima. Nem a parte do Funk é jogada aos quatro ventos, o funk é extremamente limitado apenas como apoio para outros gêneros, se apresentando em sua mais sofisticada ou mais despojada forma, dependendo da faixa.

Enfim, o interessante é que, por mais que as influências sejam facilmente identificáveis, a forma como Ana as apresenta ao ouvinte o ilude em acreditar que as músicas dos gêneros da onde se derivam soam altamente semelhantes com as do álbum. Pois é, não soam. A estética do Sophisti Pop e do Boogie são transparentes como vidro, mas o luxo de uma música da Marina Lima é grandemente alterado para caber no que Ana faz, nos moldes necessários para construir uma atmosfera perfeita e melodias incansáveis. Em uma rasa análise logo percebe-se que o disco é uma aglomeração de influências muito mais embaralhada do que parece. Como Funk e Baroque Pop se complementam como queijo e goiabada, ao passo que tem uma música de Pop Tradicional e outra de Boogie na mesma tracklist?

A resposta é simples: Ana mascara tudo como ninguém. A tal da maturidade em saber a trajetória e características obscuras e profundas de cada influência concede uma vantagem impressionante à artista: ela consegue colocar o que e quando quer para obter os frutos exatos que deseja colher com sua arte. É por isso que ela reduz todos esses alicerces ultra intrincados a uma música que soa tão simples e aproximável do comum. Elu faz música pop como ninguém, simplificando e tornando palatável algo inerentemente labiríntico — é fantástico, e, honestamente, louvável.

Capa de Fullgás, um marco do Sophisti Pop brasileiro.

Ok, já ficou evidente que Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua é praticamente infalível em tudo que se propõe aos meus olhos. Não fiz nada além de elogiar dos pés a cabeça todo e qualquer elemento dele… mas, infelizmente, isso muda a partir de agora.

As duas próximas músicas são, sem dúvida alguma, as que mais falham nos pontos principais do disco. Sejam as temáticas, qualidade técnica, o tal do reducionismo do complexo ao simplificado, o anacronismo, os refrões, a voz de Ana, o detalhe e etc… elas se perdem relativamente bastante nesses quesitos. Porém, mesmo que abaixo do nível virtualmente magistral das outras faixas, elas ainda funcionam melhor que uma maciça parte do Pop nacional — e são genuinamente muito boas também —, assim merecem uma colher de chá.

“Let’s Go To Before Again” é um interlúdio instrumental de Cocktail Nation. Pois é, eu também não sabia o que era isso. É um subgênero de músicas de fácil escuta — aquelas bem elevador americanizado — mas que vai um pouco além de suas bases e comumente ironiza a própria candura do gênero de onde veio. Olha, não há muito o que comentar sobre ela. É um instrumental fofinho que segue as bases do gênero, mas um pouco melhor executado, e é agradável enquanto se ouve, com texturas super acolhedoras e criativas que se complementam em grande ternura… mas não traz literalmente nada de interessante ao disco — e pior, não tem nada a ver com o que já foi explorado na marca dos ¾ do álbum. É sonoramente divertidinha e espiritualmente apaziguante, mas não tem o charme dos anacronismos líricos, danças loucas ou pura beleza do que já nos foi apresentado, muito menos serve algum propósito de transição útil. Ainda sim, ótimo instrumental, só não vai além disso, deixando a desejar.

Certo. Infelizmente agora vem “Debaixo Do Pano”, que é decerto a pior música do disco — e falo isso sem medo algum. Primeiramente, esse é um cover da música homônima de Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo, e saber isso é essencial. A música original tem um sentimento DIY, um Indie Rock bem banda de garagem com uma mixagem propositalmente abafada e claustrofóbica, para justamente legitimar essa estética lo-fi e contrastar perfeitamente com os arranjos de saxofones resplandecentes do refrão. Bem, perceptivelmente a música não tem muito a ver com Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua por optar por uma sonoridade menos luxuosa e sim mais rústica e seca, mas mesmo assim parte desse sentimento foi transportado para a versão do disco de Ana.

Eu genuinamente adoro “Debaixo Do Pano” de Sophia Chablau — e todo aquele álbum, inclusive —, mas não há literalmente motivo algum de utilizar uma mixagem cheia de compressão num álbum que em todas as outras músicas nada disso tem. O filtro e compressão na voz da Ana soa sujo e podre, o que casa perfeito no debut de Sophia Chablau, mas simplesmente não cola num álbum que pode ser descrito unicamente pela palavra “deslumbrante”. A utilização predominante de baterias e instrumentos eletrônicos também é definitivamente incoerente com qualquer outra música aqui, de forma que a parte de utilizar da sensibilidade da história de gêneros para combinar sem pontas soltas estéticas diferentes some integralmente. É uma música que caberia em discos de literalmente qualquer outro artista, mas se situa em um contexto imprescindivelmente Ana Frango Elétrico… lamentável.

Ainda sim, é óbvio que é uma boa música. Fora do contexto do álbum ela tem seu charme justamente pela texturização terrosa e áspera dos metais, da voz de Ana e das percussões eletrônicas. É com certeza uma das mais divertidas que a artista já fez e uma das mais caóticas e descabeladas também, e dá para notar isso sem nenhum problema ao ouvir ela de modo avulso, como um single sem álbum, entretanto, não é o caso, e devemos considerar isso.

Capa de Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo, álbum que contém Debaixo do Pano.

Chegando ao final do disco, ele pega gás novamente com uma faixa de Boogie para aumentar os ânimos, "Dr. Sabe Tudo". A progressão dos sintetizadores passa a mesma sensação de prazer que comer aquele, sim, aquele docinho de aniversário chique — é muito satisfatório, e não cansa nunca. A linha de baixo e a bateria são meio simples, mas entregam um bom trabalho em deixar o groove assentar, fazendo o ouvinte focar ou nas clássicas passagens de trompete de Boogie ou na já mencionada progressão de acordes suculenta do sintetizador.

O maior destaque da faixa é, de fato, o refrão, que vai muito além de chiclete, ele é superbonder. De forma estranhamente abrupta ele surge com muito mais garra e explosão que o primeiro verso, acertando e muito nas melodias vocais e back vocals, sendo que a partir daí a faixa pega fogo de vez e liberta seu verdadeiro potencial. A lírica surrealista da artista é tão ridícula que dá gosto de repetir palavra por palavra com um sorriso estampado no rosto.

"É que eu sou o doutor sabe tudo / Discutindo o amor, não me iludo / Pra que sustentar o amarelo / No sorriso tão pé de chinelo?".

Não tenho nada a comentar, é só um refrão perfeito por sua simplicidade e graça.

É uma faixa descomplicada que finaliza o disco como uma pena, não tem motivos muito complexos, reflexões existenciais, tecnicalidades chocantes, conceitos mirabolantes ou até fatores surpresa. "Dr. Sabe Tudo" é só uma música para dançar, e por que eu pediria mais que isso? Pela décima faixa não precisávamos de algo a mais, esse é um ótimo fim que nos lembra que o objetivo máximo deste álbum — além de suas temáticas de amor queer — é divertir. É um álbum leve para quem não quer se aprofundar nas entrelinhas de cada faixa, como uma chave mestra que cabe em todas as situações: fazendo afazeres de casa, estudando, no baile, contemplando, com a amada, com o amado, com ê amade, com os amigos, até trabalhando. Nada melhor que uma música que é basicamente só refrão para relembrar o quão simples esse disco foi diligentemente feito para ser.

Capa de Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua (álbumzão).

Concluindo todo esse especial, gostaria de discutir o que esse álbum representa num esquema maior da música brasileira.

Estamos vivendo um cenário desde o começo/metade da década passada de movimentos que reimaginam de alguma forma épocas passadas da música brasileira — enquanto outros se pintam como atos singulares. Essa onda se une ao pop pós-Rouge deplorável de atos como Anitta, Jão e Luísa Sonza, o que cria uma clara dicotomia mas que se confunde por não ser tudo preto no branco, um exemplo óbvio sendo a Pabllo Vittar, que certamente não é nem totalmente Pop nem totalmente parte dessa outra onda.

Chamemos essa era atual de pós-MPB, já que pega muito mais dos períodos dos anos 60 aos 80 do Brasil que de influências internacionais ou contemporâneas, mas não diretamente copiando como seria um gênero de revival, e sim usando esse recorte temporal para se inspirar e criar uma experiência inédita em relação ao que já ouvimos — pelo menos deveria. Seja por meio de anacronismos, de repaginações saídas direto do forno, junções loucas com influências atuais ou experimentalismo maior na música daquela época, essa geração nova está subvertendo muitas expectativas e encantando o Brasil e mundo afora.

Ana fazer parte desse movimento com trabalhos tão maravilhosos quanto esse e LECH representa muito bem que a música Pop no Brasil não está perdida no genérico e fadada a se submeter às mudanças culturais estadunidenses e europeias. Elu ser capaz de criar algo muito mais comovente que qualquer ruído que sai da boca de Anitta ou de Jão e sem em nenhum momento deixar sua música menos acessível ou que converse menos com a geração atual — demonstrado por ser impossível qualquer reacionário ouvir “Dela” sem enfartar — é justamente a direção correta que o Pop no Brasil deveria tomar. São gêneros musicais que conversam com todos os demográficos? Absolutamente não, mas música Pop nunca foi sobre isso.

É um álbum que consegue quebrar a linha entre gerações e agradar quase a todos, pondo o Brasil de cara a tapa a explorar seu verdadeiro potencial e não fazer interpolações de meia tijela e chamar de nova MPB, ou procurar apoio do Caetano Veloso para se afirmar como música brasileira de verdade. A música brasileira de verdade é essa, vinda do coração de alguém que conhece-a como ninguém e utiliza disso para criar algo especial, focado, lindo e principalmente divertido.

As músicas angelicais — “Nuvem Vermelha”, “Camelo Azul” e “Insista Em Mim” — são os momentos mais íntimos e inspirados do álbum, emocionando lgbtêres como hino festivo do nosso amor. Já as músicas dançantes — “Electric Fish”, “Dela”, “Boy Of Stranger Things” e “Dr. Sabe Tudo” — são os momentos mais descontrolados e proveitosos do álbum, onde a lucidez é questionada e a dança é imparável e servindo como banquete completo de música encantadora para se viciar em.

Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua é um marco na música brasileira tanto por seu recorte histórico quanto por nível de qualidade, disco indispensável que se eternizará como cara tanto da pós-MPB quanto do Sophisti Pop e da música Boogie. Ana Frango Elétrico é realmente ume artiste de uma vez em nunca.
Sophi

Sophia, 18 anos, estudante e redatora no Aquele Tuim, em que faço parte das curadorias de Rap e Hip Hop e Experimental/Eletrônica e Funk.

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