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1/5
De acordo com a lenda grega, depois que Teseu salvou as crianças atenienses e matou o Minotauro, ele escapou em um navio que ia para Delos. Para comemorar essa feitoria, os atenienses viajavam com esse navio todos os anos de volta para Delos. Para preservar o navio, sempre que uma parte quebrava ela era substituída. Daí surgiu um grande questionamento: se cada parte do navio foi substituída, ele ainda era o mesmo?
Esse experimento mental já gerou grandes discussões, principalmente, no campo da filosofia da identidade e ficou ressoando na minha cabeça enquanto ouvia esse projeto do Travis Scott com sua gravadora, Cactus Jack, principalmente porque “Identidade” é algo que está em escassez aqui.
Depois de uma subida estratosférica ao mainstream e se estabelecer como um dos grandes atos do hip hop na última década, Travis Scott parece que largou a mão do volante na virada de década e mudou seu foco para a marca Travis Scott™. Agora, ao invés de sequer tentar chegar perto dos limites sonoros do rap, algo que ele e o mentor, Kanye West, se orgulhavam de fazer, parece que o grande plano é apresentar um som energético o suficiente para garantir seu selo de rager (a gente ainda consegue atrelar esse selo a ele?) e amigável o suficiente para garantir a próxima parceria com uma marca.
Mas quais partes exatamente foram substituídas? Aparentemente as bases dele para criar sua sonoridade, Kanye West e Mike Dean. Enquanto o primeiro se tornou basicamente incapaz de produzir qualquer coisa minimamente interessante nos últimos anos – e talvez um dia a gente possa discutir se isso é exatamente uma novidade ou se Ye só sempre esteve envolto pelos nomes certos, mas esse não é o foco aqui – o segundo aparentemente deixou trabalhar com Travis e tá vivendo a vida de turnê com The Weeknd. JACKBOYS II é, então, o primeiro projeto de Travis Scott onde ele não pôde pegar uma demo antiga do Kanye West ou colocar um sintetizador oitentista do Mike Dean em alguma música e agora surge a pergunta: o que resta? Ele sabe se virar sem suas muletas?
Quando vou ouvir uma música do Travis Scott eu não espero que ele discuta problemas de desigualdade estrutural ou temas filosóficos que me fazem questionar meu lugar no mundo, mas se ele não consegue me entregar uma energia legalzinha e não tem qualquer substância nas letras, o que eu devo tirar daqui? E dizer isso não é alegar uma ideia funcionalista para a música, algo como dizer que toda a música precisa servir para alguma coisa, o ponto é qual a identidade desse som? O que exatamente ele pretende fazer? Ou, ainda, sem ingenuidade de que música por vezes é mero fator comercial, mas se for, qual a exata diferença desse álbum para uma sessão de fotos postada no Instagram do trapstar e que provavelmente geraria o mesmo buzz.
Esse álbum era pra ser um esforço coletivo da gravadora, mostrando a química entre os artistas, os lugares que eles podem explorar em seus projetos solo e, mais que isso, mostrar as habilidade de curadoria do próprio Jack. Nada disso tá presente, o que a gente tem são uns esforços que beiram a megalomania; Travis Scott canta sem nenhum outro membro da gravadora em 8 das 17 músicas e pra efeitos de comparação Sheck Wes não tem nenhuma música solo no projeto e aparece somente 3 vezes no álbum.
Mas a pouca visibilidade não é todo o problema, as performances que entraram no álbum são no mínimo entediantes, Don Toliver, por exemplo, parecia que simplesmente não queria gravar “CANT STOP” mas o fez de birra. Um dos poucos destaques positivos do álbum foi SoFaygo, que usou “MM3” pra dar um sinal de vida diretamente do porão da Cactus Jack. Mas ele não conseguiu salvar “CONTEST”, não depois que o Travis Scott passou quase 3 minutos fingindo que é um rapper de 22 anos no Soundcloud depois de ouvir Whole Lotta Red, mas já com seus 35 anos, os tempos de Soundcloud ficaram no passado e o que restou foi algo perto da caricatura, mais reacionária do que seria um jovem nas plataformas digitais.
Pra não dizer que nada se salva, “SHYNE” (com destaque para a química que o rapper teve com a GloRilla) e “FLORIDA FLOW” nos mostram duas performances interessantes do Travis Scott e indicam que pode existir sim alguma identidade quando você troca todas as partes de algo, talvez exista sim, um Travis Scott que ainda tem algum interesse por música, mas ele não tá no banco do motorista a um tempo já.
No fim do dia, JACKBOYS II é um disco inchado e previsível, em que parece que alguém pegou os piores pontos de vários artistas e chamou de álbum. O projeto fica ainda pior se comparar com o primeiro, que saiu lá em 2019, onde, em apenas 7 faixas, Travis Scott mostrou não só o potencial da sua gravadora e sua habilidade de curadoria, mas também deu uma olhada para o futuro do rap quando introduziu Pop Smoke e o drill nova-iorquino para o grande público. Quando você olha para a tracklist da sequência não parece que nada aqui é o futuro do rap, tampouco uma boa visão do passado, parece apenas decadente.
Selo: Cactus Jack, Epic
Formato: Compilação
Gênero: Hip Hop