
★★★★☆
4/5
Marina Melo entrega, em Ousar Abrir, uma obra engenhosa, sem figurações avulsas, e que se debruça sobre a percepção do tempo, entrelaçando vivências íntimas e experiências coletivas. É um registro que ganha sua força máxima pela forma de imergir o ouvinte em sua atmosfera provocativa, sustentada por sua abordagem musical pouco convencional no uso de instrumentos e na construção de texturas.
O que mais chama atenção ao se escutar o registro é a forma como sua instrumentação parte, geralmente, de uma base de violão, acompanhada por elementos que misturam o eletrônico a timbres que evocam o acústico. Há, nisso, uma particularidade muito delicada de intenções de estilo, que beira o raro em muitos momentos. É por isso que o violão aparece ao lado de sintetizadores, efeitos e baterias eletrônicas que, muitas vezes, exploram ritmos desconcertantes e glitches associados a vertentes experimentais da música eletrônica.
É como se, Marina, jamais quisesse ficar parada, estática, e propusesse esses instantes para nos tirar do espaço que nos colocamos ao associar o uso de cordas com algo instintivamente natural, orgânico, não que aqui não haja isso, mas o álbum vai além o tempo todo. Mais curioso ainda é saber que essa sonoridade resulta da manipulação artesanal de sons feita pelo designer de som Lucas Ferrari, posteriormente utilizada por Luiza Brina na produção do disco.
A combinação entre instrumentos tradicionais e sons manipulados manualmente constrói uma ambientação singular, que acaba fazendo sentido nesse contexto apresentado, pois suas particularidades espelham mais do que boas técnicas, como também o diálogo com os temas densos sobre a passagem do tempo, mantendo o ouvinte instigado, atônito, diante do que Marina Melo tem a revelar.
Tematicamente, além do assunto central da obra, o disco é dividido em dois lados, segundo o comunicado divulgado à imprensa. No primeiro, há uma abordagem mais íntima e pessoal; no segundo, o foco se volta ao impacto das questões temporais na sociedade como um todo, com ênfase na realidade da cidade de São Paulo. Essa virada temática é perceptível ao longo do álbum. Em “Prometeu”, por exemplo, Marina parece refletir sobre o crescimento vertical nas áreas urbanas, o prédio que prometeu o céu — aludindo aos arranha-céus —, mas que acabou por cobrir o céu da cidade. Já em “Cidade”, a mensagem é construída a partir da própria sonoridade. A faixa parece dialogar diretamente com a experiência paulistana, marcada por uma relação acelerada com o tempo e a fluidez dos sentimentos que vão e vêm num tempo próprio, muito direto. O ritmo vibrante das baterias, somado aos metais desconcertantes que surgem em momentos pontuais, cria uma atmosfera caótica que remete ao movimento incessante dos grandes centros urbanos.
Observe que, mais do que simplesmente expor suas ideias, Marina Melo constrói imagens vívidas na mente do ouvinte, e o faz com uma dedicação e inventividade notáveis. Sua abordagem não teme explorar caminhos narrativos desafiadores, especialmente num cenário em que, guiados por algoritmos, muitos artistas optam por uma entrega mais literal e direta em discos que se bastam pelo léxico da junção, formação de palavras, frases e períodos do Português Brasileiro e suas variações. Aqui, há pouca obviedade e muita riqueza, inclusive linguística. O resultado é uma expressão artística única, que se destaca tanto pela profundidade temática quanto pela riqueza musical.
Ouça: Spotify
Selo: dobra discos / Marina Melo
Formato: LP
Gênero: Música Brasileira / MPB, Art Pop