
5/5
Quando se trata de um lançamento da dupla formada por Isma e Vita, é sempre esperado muita diversão, sexualidade e batidas potentes que muitas vezes são tão intensas quanto os vocais apresentados. Dessa vez, além da surpreendente evolução temática, houve um aprimoramento da própria fórmula, demonstrando que é possível criar um espaço para o puro entretenimento e se levar um pouco mais a sério ao mesmo tempo. O que deixa tudo mais interessante é a profundidade que se revela diante da existência de seu antônimo, Gambiarra Chic, Pt. 1, que mesmo já lançado com o propósito de ter um sucessor, não se tinha em mente tamanha proporção e conquistas que a carreira das artistas alcançaria.
Neste contexto, existe um senso de continuidade em relação ao trabalho anterior muito apurado: as batidas continuam enérgicas, mas dando mais espaço para o que as irmãs querem e precisam falar; a mixagem e a produção está mais limpa, mas ainda assim com certo teor de barulho muito bem dosado; até mesmo o material gráfico está melhor desenvolvido, com maior investimento e uma proposta visual mais sofisticada, mas que ainda brinca com a dualidade entre os dois projetos e reflete a mudança no estilo de vida das artistas.
Isso nos faz acreditar que, enquanto a parte 1 está mais próxima da "gambiarra", a parte 2, por sua vez, apresenta o lado mais "chic" do duo, projeto mais interessante do funk, e talvez, da música brasileira atual. A internacionalização e a ascensão social da dupla recriada através dos seus versos é o fio condutor do álbum, que sintetiza críticas sociais profundas como em “POSTURADAS”: “Só pra quem veio do chão sabe o peso da história / Ostento postura, na missão não falo / Pegar o que é nosso, nunca foi assalto”, e em “PASSAPORTE Y COPÃO”: “Fuck you the police / Fuck you the system”, faixas que falam sobre a vivência na periferia e a importância de se explorar (aqui, a extensão de temas) para além desses muros, também em sentido de denúncia da alienação de classes e, até mesmo, da violência policial nesses espaços.
Sabe-se que o fator denúncia já existia naturalmente quando se falava em ouvir não só Irmãs de Pau, mas o funk em si, afinal, a expressão periférica sempre se deu também a partir de gêneros musicais marginalizados e com letras sexualmente explícitas. A grande questão por trás das Irmãs de Pau, reforçada pelo álbum, é que, ao abordar de forma tão divertida a sexualidade das travestis e pessoas LBTQIAP+ num geral, nota-se um escape da caixinha higienizada do mito da representatividade e, a partir disso, passamos para uma mensagem de pertencimento em sua essência — sem precisar criar novos gritos de guerra para isso, apenas fazendo o que se faz dentro das músicas deste gênero musical, mas em um contexto próximo da sua vivência. Uma síntese dessa mensagem é “QUEENS OF CUNTY”, que diz: “Amante da putaria, putaria, noite e dia / Tomo piroca de noite, chupo buceta de dia”, enquanto a batida eletrônica e o funk se difundem no instrumental.
Outra tarefa muito bem cumprida pelo álbum é a tradução de muitas linguagens para o contexto cultural brasileiro, seja nas outras línguas propriamente ditas em momentos cujo inglês ou espanhol são utilizados para dar mais sentido ao que o público brasileiro possa se conectar do que o público estrangeiro propriamente dito, ou então em subgêneros e movimentos culturais do exterior, como o ballroom. Esse poder de misturar o baile funk mandelão com o movimento cultural do ballroom, nascido nos Estados Unidos, é uma coisa que somente as irmãs de pau sabem fazer tão bem, como no culto profano em “MEDLEY DO NOVO MUNDO” e no início da épica “TRÊS ESPIÃS DEMAIS”, que cantam em ritmo de uma cantiga do folclore brasileiro:
Femme Queenzina ‘ta na rodinha / Servindo muito cunt para as madrinhas / Hands daqui, hands de lá/ E um belo catwalk e um dip pra fechar (Aha)
Além disso, as irmãs contam com parcerias de grandes nomes do rap feminino. Ebony vem muito carismática no refrão de “BAILE NO RXOTA”, e Duquesa com um verso devastador e flow envolvente na faixa “QUEIMANDO ICE”, trazendo um pouco mais de intimidade com o hip hop num geral que pode ser observado em outros momentos do álbum sem nenhum feat. Outra influência musical e muito importante para criar uma quebra para a segunda metade do álbum é o raga, presente em “FUEGO”, que utiliza o tuim do funk mandelão de forma muito criativa e pausada na metade final da música.
De fato, Gambiarra Chic, Pt. 2 ainda carrega toda a criatividade, carisma, ferocidade, atitude, atrevimento, talento e coragem que vimos em todos os seus trabalhos até aqui, mas de uma forma mais lapidada e impossível de não se conectar. Por isso é necessário reconhecer o potencial das Irmãs de Pau como artistas que unem, dentro do funk e hip hop, todas as pessoas marginalizadas assim como o próprio gênero, criando um espaço verdadeiramente seguro e inclusivo em todo lugar que sua música toca. De uma forma ou de outra, o duo ainda enfrenta paradigmas dentro da própria comunidade para que e de que se fala, sendo este lançamento um pouco mais envergado para o mainstream, uma possível porta de entrada para a difusão das artistas em muitos outros espaços.
Selo: Tratore
Formato: LP
Gênero: Funk / Mandelão, Ballroom, Drill