Crítica | O Que as Mulheres Querem


★★★☆☆
3/5

Na internet, as coisas costumam ser muito rápidas: a gente precisa produzir tudo quase em tempo real para se manter relevante, esse movimento é a prova da temporalidade do digital solapando o tempo real. Esse preâmbulo todo tem a função de dizer que se demorou a produzir esse texto (pelo menos para o tempo que a internet pede), pois as reflexões aqui contidas demoraram para tomar forma.

Douglas Silvestre — ou melhor, d.silvestre — é um dos nomes mais relevantes da cena de funk contemporâneo. Seus álbuns e singles circulam em diversas listas de melhores do ano ou década, tanto em território nacional quanto internacional, e suas faixas rompem as fronteiras dos bailes para tocar em diferentes contextos musicais. Conhecido sempre por sua inventividade e agressividade sonora, Douglas se tornou em algum momento dessa década sinônimo de exploração, experimentação e autenticidade.

As expectativas para o novo álbum de d.silvestre eram altas, para além de tudo dito no parágrafo anterior, seu último álbum, D.Silvestre, foi um sucesso absoluto e, nesse novo momento, Douglas aparecia mais confiante do que nunca: falava publicamente sobre a qualidade do seu trabalho, arriscava novas linguagens visuais como a moda (inclusive com sessões de fotos elaboradas para o disco) e era chamado por alguns de presunçoso. Era como se ele estivesse tentando afirmar que estava além do funk — ou, no mínimo, que poderia conduzi-lo por caminhos inesperados.

Em meio a esse caldeirão surgiu O Que as Mulheres Querem, o mais novo álbum do DJ, contendo 9 faixas que somam 19 minutos, em que d.silvestre vai se permitir tudo, menos soar parecido com o que se pensa ao imaginar o funk.

Sendo esse um movimento muito interessante; até porque, para poder fugir de um tipo ideal imaginado de funk, você precisa, primeiro, entender o que é funk. A gente não vai se debruçar nessa definição agora, porque daria todo um texto novo, mas vale dizer que funk é música eletrônica, que se desenvolve de forma paralela aos gêneros canonizados da música eletrônica — gêneros esses que, ao longo do seu desenvolvimento e canonização foram sequestrados por quem tentou higienizá-los, apagando dê sua história sua origem queer e negra. Destaca-se ainda que o funk, de forma ontológica, é um gênero experimental. Essa é uma de suas marcas fundadoras — e vale um texto só sobre isso, aliás. Não é novidade que artistas dentro dele exploram os limites da música eletrônica para testar suas próprias margens. Douglas já fez isso antes, e não foi o único. Mas em O Que as Mulheres Querem, ele embaralha tudo: mistura conceitos, dobra os gêneros e os reinventam, ou ainda, dá a sua cara para eles. E, com isso, se posiciona mais uma vez como alguém disposto a sacrificar o pertencimento para afirmar sua diferença

E talvez aqui esse seja o ponto fundamental, pois ao buscar de forma inalcançável se distinguir dentro de um gênero que de forma ontológica é experimental, o DJ e produtor soa como em um momento de inflexão entre os dois gêneros mães, ou seja, ao testar o limite de até onde o funk pode se aproximar da música canonicamente eletrônica, d.silvestre ultrapassou a linha e agora soa como se a música eletrônica, especificamente o EDM, estivesse experimentando o funk.

Por muito tempo enquanto escrevia esse texto pensei na metáfora do mar: como se d.silvestre tivesse apenas colocado o pé na água e sido puxado por uma corrente. Mas isso seria ignorar um ponto central da criação artística — a intencionalidade. Mais coerente é dizer que ele se jogou nesse mar, por razões que talvez nem façam sentido tentar mapear, mas que certamente passam por desejo de distinção e filiação.

Nos timbres, nas batidas e nos arranjos O Que As Mulheres Querem soa como EDM. E isso não é uma falha. Pelo contrário: talvez seja uma das experiências mais interessantes do EDM nacional nos últimos anos. Um respiro dentro de um cenário saturado por fórmulas previsíveis. Mas é aí que o paradoxo aparece: ao fazer um ótimo álbum de EDM, Douglas talvez tenha perdido a chance de fazer algo ainda mais radical dentro do próprio funk — um gênero que ainda pulsa, inventa e resiste.

Vale mencionar quais os elementos que d.silvestre escolhe para se vincular com o funk sejam dois dos mais consagrados e com possibilidade de variações que o gênero produziu, os vocais — que se destacam especialmente os de Bia Soull, MC LELE 011, MC VITIN DA DZ7 e mc mulekinho — e os instrumentos de percussão, especialmente aqueles que ficam nos registros das frequências mais baixas das ondas sonoras, que soam quase como ruído, barulho, ou aquela coçeira no fundo da orelha.

No meio disso tudo, é uma pena que ao contrário do funk, o EDM venha se tornando um gênero que nos últimos anos vem precisando ser salvo. E por isso, o álbum do Douglas não soou tão grandioso para quem tem horizontes mais amplos. Dá para salvar a música eletrônica embranquecida ainda dentro do funk, ou seja, jogando um jogo bem mais interessante e contracultural — ou parafraseando o próprio artista, mais eletrônico do que o próprio eletrônico que ele estava produzindo no seu quarto. Era possível ainda, se preocupar menos em salvar um outro gênero ou, por fim, desejar simplesmente tanto ser diferente a ponto de perder de vista o gênero mais interessante feito hoje.

No fim, O Que as Mulheres Querem é um álbum que provoca mais perguntas do que respostas — e isso é ótimo. d.silvestre não quer conforto: ele quer fricção, contraste, movimento. Ao fundir o funk com o EDM — ou ao ser engolido por ele —, ele desafia os limites de ambos. A dúvida que fica é se essa travessia foi uma expansão ou uma fuga. Mas talvez ele mesmo prefira que a gente não saiba.

Selo: Submundo 808
Formato: LP
Gênero: Funk / Eletrônica, Beat Bruxaria

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