
★★★★★
5/5
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É quase um consenso entre os apreciadores de música experimental –ou aqueles que desbravam o drone ocasionalmente – que o disco de estreia de Kali Malone, The Sacrificial Code, lançado em 2019, é uma obra-prima do gênero. Um ponto de ruptura no tecido temporal que cobre parte do que ela viria a abordar depois dele e também na maneira como passaria a influenciar outros artistas. Mas é, para mim, um ponto de partida claro e evidente. Parte desse grande apreço está, sim, na forma como muitos ouvem discos como esse com base no anseio de ter uma experiência diferente da proporcionada por obras mais musicalmente acessíveis. E ao ser elevado a esse status, The Sacrificial Code torna-se ainda mais valorizado, pois se há algo que Kali Malone sabe fazer ali é justamente corresponder ao desejo do ouvinte de ser arrancado de seu estado natural. Não é, porém, o maior desejo dela como compositora. E essa visão, quase fetichista, acerca da experiência que o álbum enquanto produto propõe, também não é a melhor forma de vê-lo hoje.
Por isso, seu relançamento, seis anos após o original, faz todo sentido. Kali Malone talvez nem soubesse, mas estava criando um monstro naquela época. Não um monstro no sentido frankensteiniano, mas uma criatura desmedida, esmagadora, capaz de possuir infinitos poderes pela forma como foi criada, desenvolvida e composta. The Sacrificial Code nasce a partir de peças para órgão elaboradas em diferentes tempos, que se convergem numa ressonância infinita, característica do trabalho de afinação que precede o toque, a criação e a adaptação das notas orquestradas por Malone. É quase um sistema, complexo, que nas três primeiras faixas, por exemplo, utiliza uma afinação desenvolvida por um aluno de Bach no século XVIII. Esse tipo de construção sonora tornou-se a maior marca da compositora, principalmente por parecer profundamente ritualístico, ainda mais por ser executada, em grande parte, em igrejas. Nessas gravações, ondas atravessam o subconsciente enquanto se misturam metais, sintetizadores, o orgânico e o sintético, como magma de um vulcão em erupção.
Por trás do álbum, há um rigoroso estudo na criação de cada investida, cada tom ou timbre que pode, entre os dedilhados, sobrepor aos tons que a artista toca com uma precisão de outro mundo. Todo esse gracejo técnico faz com que as peças construam seus signos, seja no minimalismo, seja no que se tem da música com raízes nos estilos de concerto, como se fossem um motivo a mais para gerar um culto em torno dos resultados que se alcança diante de tamanha devoção. É um conjunto de atos que mistura o calmo e o veloz em uma só intensidade. É daí que floresce a ideia de que este é um disco cuja experiência justifica o valor de ser tocado, sentido de forma diferente. Não vou mentir, é verdade. Mas este relançamento mostra que essa ideia, difundida após o lançamento original, está diretamente ligada ao ponto de partida que Kali Malone planejou ao compô-lo. Ela estava firmando tudo o que faria dali em diante, pois antes disso suas criações pendiam para abordagens mais comuns do drone. Aqui, houve a virada de chave. Uma virada que ela realiza novamente. E nós, que já conhecemos metade da missa, apenas assistimos à repetição de uma apresentação de mundo que mais ninguém conseguiu fazer desde então.
Selo: Ideologic Organ
Formato: Relançamento
Gênero: Experimental / Drone