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Notavelmente, existem claras diferenças entre os processos de reimaginação (uma música trabalhada sob um ponto de vista novo), remix (uma recontextualização sonora) e robofonia (hibridismo feito a partir de processos experimentais de desconstrução, furto e destruição), como já se sabe. Essas distinções, no entanto, não se aplicam a BRUXARIA 2K15, de guiJay. O disco, disponível no SoundCloud e Bandcamp, mescla esses três meios de criação, tão presentes no funk, de modo a provocar uma impressão ideológica de completo anarquismo musical. É uma das coisas mais criativas já feitas nos últimos anos.
Parte do efeito de confronto que o DJ e produtor causa aqui está ligada ao motivo pelo qual resgata algumas das músicas mais populares do funk da década passada. Estaria ele tentando aproximar as pistas de hoje ao passado, adicionando perspectivas atuais de som e texto, como fez DJ Dayeh em seu álbum Relíkias da Kond? Ou apenas exibindo um leque de texturas e camadas que o funk foi absorvendo desde então?
Na verdade, guiJay faz as duas coisas. Na descrição do álbum, ele afirma estar “trazendo algumas das músicas que marcaram a década passada pro timbre que tá acabando com o funk”. É preciso compreender que esse timbre é o bruxaria, uma vertente do mandelão cuja estética distorceu qualquer concepção criativa anterior desde que incorporou elementos densos, barulhentos, ruidosos e profundamente conectados à tradição da música eletrônica experimental, como o industrial e o power noise. Nos últimos meses, surgiu uma rivalidade pouco saudável entre DJs do bruxaria e do ritmado, outra vertente do mandelão, mais dançante e minimalista, com foco em percussões e acapellas de MCs populares.
Um dos argumentos mais comuns entre nomes do ritmado é o de que o bruxaria estaria “acabando com o funk”. Desde então, não faltaram manifestações em oposição a essa ideia, como os recentes álbuns do DJ Talala, DJ QUISSAK e DJ Romano ZL, entre outros. BRUXARIA 2K15 vai além, pois traz uma visão externa de guiJay sobre essas disputas. Ele mistura o funk em suas diversas formas com também diversas formas de eletrônica. O resultado é uma miscelânea completa de ritmos e abordagens que passam pela reimaginação, pelo remix e pela robofonia, fluindo sem se limitar a uma única classificação.
Na faixa de abertura, “A GENTE BRIGOU”, texturas líquidas de techno se misturam com percussão e risadas de bruxa, enquanto que “OPEN THE TCHEKA” percorre beats de assobio, batidas do automotivo e percussões ainda mais intensas. Esses elementos se repetem de forma orgânica ao longo do disco até culminarem em “MTG BIN LADEN feat. LVNT”, faixa em que o tuim, assinatura mais polêmica do bruxaria, surge para destruir as estruturas erguidas por discursos, vamos combinar, frágeis. O ruído se ergue lentamente, sem nenhum tipo de drop ou explosão calculada, e vai ficando cada vez mais forte, ao ponto de atravessar nossos tímpanos e atingir a região mais profunda do cérebro – o tipo de sensação que verdadeiramente instiga a alucinação. É um manifesto sobre como o funk é um dos produtos mais transgressores da atualidade, e basta dar o play nesses pouco mais de cinco minutos para perceber isso.
E se ainda havia qualquer dúvida sobre as diferenças entre reimaginação, remix e robofonia no funk, BRUXARIA 2K15 garante que essas dúvidas permaneçam. Isso porque não é um álbum feito para dar respostas, embora possa oferecê-las aos ouvintes mais atentos. É um trabalho feito para questionar, para deslocar o ouvinte de funk do lugar cômodo em que pode cair ao acreditar que o gênero está sendo destruído. E só isso já vale mais do que qualquer explicação.
Compre: Bandcamp
Selo: Independente
Formato: LP
Gênero: Funk / Mandelão