Crítica | Rock Doido


★★★★☆
4/5

Que Gaby Amarantos é uma das maiores potências artísticas que transmitem a cultura norte-brasileira não precisa ser dito. Desde seus primeiros sucessos, “Xirley” e “Ex My Love”, temos acompanhado a trajetória da artista vencedora do Grammy Latino com um prêmio que prestigia trabalhos voltados para as raízes e regionalidades da música no contexto nacional, algo muito bem sucedido em seu álbum de releituras TecnoShow.

Dessa vez, a ideia da artista foi de captar a essência de uma festa que faz parte não só da tradição popular como da identidade regional do Pará, através de um fenômeno cultural que acontece nas festas de aparelhagem e também dá o título do álbum, Rock Doido. Nessa nova empreitada, a cantora expande ainda mais estes raios folclóricos que começaram a irradiar — literalmente, vide a arte da capa —, em seu primeiro LP TREME.

A partir de uma experiência nonstop, o álbum foi pensado para soar como um dj set das festas de aparelhagem, com momentos muito enérgicos e descontraídos, embalados por gêneros como o tecnobrega, melody, carimbó, funk e até mesmo umas batidas de techno aqui e ali. No decorrer dos 36 minutos de álbum, é criada uma atmosfera intensa e muito divertida, com uma mixagem propositalmente bruta, sem muita preocupação em se lapidar, numa sequência musical muito agradável e quase sem nenhuma música filler.

A tradução desses subgêneros e signos culturais em trabalhos como esse, por si só, é uma tarefa ambiciosa. Neste caso, o ponto de equilíbrio encontrado pela artista foi não se levar tão a sério e apostar no potencial de grande identificação da música amazonense que o restante do Brasil pode captar. Seguindo essa proposta, não é como se estivéssemos prestes a ouvir um trabalho inovador, focado em letras profundamente elaboradas e produções experimentais.

O foco aqui é em criar uma storyline de fácil identificação do público repleta de elementos e manifestações locais, retratando de que maneira as pessoas inseridas no contexto do rock doido vivenciam contextos universais. As faixas passeiam entre temas que vão desde à preparação do look para ir numa festa de rock doido, o encontro com um ex ficante indesejado, a curtição nas festas de aparelhagem, um affair duvidoso no meio da noite e, por fim, a calmaria pós curtição.

Um elemento interessante e muito bem explorado no álbum são as repetições, que para muitos pode soar cansativo ou um caminho preguiçoso, mas que na verdade segue quase que a mesma lógica de composição musical do funk no contexto paulista ou até mesmo carioca: repetir para cativar. Outra aposta cativante está em “Foguinho”, uma releitura com potencial viral do hit “Somebody That I Used To Know”, que também ganhou uma versão muito menos interessante e divertida que a de Gaby pela rapper Doechii, com a música “Anxiety”.

O álbum também conta com grandes parcerias locais que contribuem para a caracterização de uma boa noitada paraense, como destaque temos “Te Amo Fudido” com a participação de Viviane Batidão e a tão aguardada parceria com a Gangue do Eletro, grupo importante e tradicional de tecnobrega, em “Tumbalatum”, uma música cheia de momentos eletronicamente bizarros e fascinantes, sendo o ponto alto do álbum.

A tracklist denuncia o teor nada sério do trabalho, com faixas nomeadas por expressões nortistas e cacoetes da artista como “Parararurau” e “BBBBBBB”, que coincidentemente se destacam pela sua personalidade e performance vocal da artista. Por falar nisso, é perceptível a naturalidade e prazer de Gaby em cantar esse álbum, sendo seus vocais um destaque em todo o LP, se permitindo brincar de todas as formas: exagerando, gritando, brincando e apostando tudo no carisma.

Outra tarefa difícil cumprida pelo álbum é fugir de uma das tendências da indústria musical comercial mais datadas e clichês que existem, que é apelar para o tema ‘festa’ na tentativa de conquistar o público de forma rasa, afinal, quem não gosta de uma boa bagunça? Nesse caso, Gaby vai além do “put your hands up” que era febre nos meados de 2010 e incorpora o “dá-lhe sal”, proporcionando novas camadas tanto na experiência auditiva quanto na construção de sentidos que essa festa pode tomar para o projeto como um todo. No contexto temático, podemos considerá-lo como o EUSEXUA amazonense.

Trabalhos como o Rock Doido é uma das provas de que, mesmo não nascendo nesse contexto cultural, ao nos depararmos com materiais como esse, podemos encontrar um espaço de pertencimento, cumprindo um papel importantíssimo da arte que é transformar vivências por meio da identificação. No fim das contas, essa é a moral de todo o álbum, além de, é claro, dar maior visibilidade à cultura paraense e crédito ao universo que criou sua intérprete como a conhecemos.

Voltar às origens, nesse caso, se trata não só de surfar em uma onda que está em crescente no contexto nacional, vide a popularização das festas de rock doido que unem cada vez mais público e DJs já conhecidos por outros trabalhos fora das aparelhagens. E, mesmo que fosse, Gaby estaria errada? Talvez seja não só um momento de ganhar novos virais e reconhecimento pela propagação dessa cultura, mas também de aproveitar essa conjuntura em que a bandeira — que a artista sempre lutou para ser levantada — está tremulando rumo ao topo do mastro.

Selo: Deck
Formato: LP
Gênero: Pop / Tecnobrega, Melody, Brega Funk.
Lucas Granado

Mestre em Letras, nascido em Curitiba nos anos 2000. Me considero um híbrido entre as gerações 'y' e 'z', o que me torna explorador dos clássicos, mas também aberto às novidades do mundo da música. Participo da curadoria de Funk do Aquele Tuim desde 2025.

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