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Todos nós ouvimos músicas porque, de algum modo, acreditamos ser maiores do que elas. Depois que passam os dois, cinco ou sete minutos de uma canção qualquer, sabemos que permanecemos, e como ouvintes, seguimos existindo. Antes e depois de ouvir um disco, bom ou ruim, ainda somos os mesmos. Quando o disco é bom, voltamos a ele. Ouvimos uma, duas, três vezes. Deciframos suas camadas como mais alguns minutos que passam pela nossa vida. Entramos numa espiral, e é isso que faz a roda girar, que nos move a querer mais música, mais discos, mais artistas. Mas o que acontece quando, inesperadamente, a música é maior do que nós? O que fazer quando, ao silenciar, não é ela que desaparece, mas nós, enquanto ela permanece e ocupa o nosso lugar?
Não sei como responder a essa pergunta depois de ouvir o novo trabalho da musicista Klein, sleep with a cane. Nada soou assim até agora. Quase todo ano Klein lança um ou mais discos, sempre em movimento, como se desafiasse a si mesma e, por consequência, a nós também. Essa busca por desafio, no sentido mais amplo do termo, é o que torna cada material distante do anterior. É assim que ela faz a própria roda girar. Escutá-la é aceitar que não basta ouvir uma ou duas vezes. Aqui, seus drones partem de um estado que ultrapassa os clichês da melancolia em boa dose. São peças que vivem em um espaço próprio de criação e que se ajustam constantemente aos nossos ouvidos, como se ela soubesse o que já escutamos e o que ainda não, misturando ambos e produzindo algo inédito.
O disco paira entre drone, gravações de campo, colagens sonoras e tudo aquilo que Klein intui ser passível de transformar em matéria própria para nos entregar de forma generosa. É o tipo de artista que cria seus próprios maneirismos porque entende que alguém como eu precisa, em algum momento, admitir que a música é maior. Muitos chamariam isso de devocional, uma ideia talvez grandiosa demais, mas que se impõe quando ouvimos faixas como “it is what it is in d minor”, com ondas do mar batendo na costa enquanto um drone sustenta uma nota que varia em tom e ritmo. Algo que já conhecemos, você e eu, mas que aqui se mostra maior do que nós dois.
São vários momentos assim. Alguns mais diretos, como “gate of return”, que sugere profundidade de texturas, rigidez e sons metálicos arrastados, que passam por um dark ambient com ruídos quase estáticos. Outros mais simples, mas belos justamente por isso, como “iluvlive (2012)”, que começa em dedilhados e logo se transforma em tons industriais, texturas eletroacústicas feitas de ruídos humanos, com uma cadência que se manifesta em vocalizações quase ritualísticas. “for 6 guitar, damilola” chega perto do literal: acordes de guitarra entremeados por fragmentos vocais, disparos, sirenes e glitches. Tudo soa solto, livre de qualquer excesso de cálculo criativo, ainda que a intencionalidade esteja lá. As colaborações reforçam essa variedade. A primeira, com Space Afrika, dura apenas 16 segundos; a segunda, com Ecco2k, é um épico de dez minutos em que, mais do que cantar, Ecco2k compõe ao lado de Klein um drone denso, cheio de elementos que arrepiam, ultrapassando a simples entonação das notas. É inesperado, surpreendente. Klein faz a roda de Ecco2k girar também.
Há um poder único no modo como Klein nos conduz a esse espaço em que a música se torna maior do que nós. “rich dad poor dad” é a única faixa que se aproxima de uma estrutura reconhecível, com vocais, melodia, uma forma de canção, ainda que subvertida. As notas mínimas persistem, a voz parece não se esforçar para cantar ou narrar, e o conjunto desses dois elementos provoca um sentimento difícil de traduzir sem escapar da própria musicalidade. É uma das coisas mais belas que já ouvi em minha vida. Fiquei sem entender. Continuo sem entender. Porque ali, mais do que palavras, estava a revelação: pela primeira vez, eu não era maior do que a música. Ela era maior do que eu.
Selo: Parkwuud Entertainment
Formato: LP
Gênero: Experimental / Drone