Opinião | Afinal, música feita por Inteligência Artificial é música?

Hoje, discutiremos o dilema da arte feita por IA e como a música surge nesse espaço a partir de indagações já superadas no passado.

Recentemente, uma nova regra do Grammy foi aprovada para decidir o prêmio de músicas feitas em IA. Ficou decidido que, em resumo, canções em que não se possa provar — ou visualizar a qualidade autoral de um ser humano — não podem concorrer ao Grammy. No mesmo momento, a cantora, compositora, multi-instrumentista e artista plástica Grimes, que recentemente havia autorizado o uso da sua voz em IA para compor qualquer música que qualquer pessoa quisesse (em troca de 50% dos royalties); se pronunciou no Twitter acerca dessa decisão.

De acordo com ela, pouco importa isso, pois não anula a possibilidade de fazer músicas em IA e de elas chegarem a concorrer à premiação, porém, ela questiona: Qual a real importância do Grammy? Por que importa tanto a validação dessa decisão? Antes de responder qualquer uma dessas perguntas, vale levar em consideração todas as discussões que sempre voltam às redes quando se fala sobre IA e arte recentemente. Então… por partes:


Arte feita por Inteligência Artificial é arte?

Existem duas respostas para essa pergunta. Na primeira, a resposta é simples: sim, pois como a própria pergunta diz: “arte” feita por IA é arte! A segunda, ainda tem tudo a ver com a primeira, mas vou tentar aprofundar mais em cima dela, por ser mais complexa.

Em um cenário (imaginário) em que é necessário decidir, ou debater: o que é, ou não, arte, precisamos entender os critérios que utilizamos para responder: “sim” ou “não”. Portanto, o que faz da arte, arte? É a estética? É o autorismo? É a qualidade humana de impor sentimentos e características subjetivas em algo? É a beleza?

Se você respondeu qualquer uma dessas — ou tem uma concepção própria atrelada a qualquer uma dessas visões; seria interessante então notar que esse debate já foi completamente superado pela arte contemporânea. A resposta então seria: nenhum desses. A arte não precisa de nenhum desses critérios. Afinal, nem toda arte é, ou possui, estética (algumas nem sequer são materiais). Nem toda arte tem características autorais (por exemplo, o minimalismo, arte em série). Nem toda arte impõe subjetividade, e nem tudo que é subjetivo, é arte. Por fim, nem toda arte é bela.

Qual, então, é a conclusão que os contemporâneos chegam acerca do que faz a arte ser considerada como arte? Simplesmente a validação em torno dela. Para dar um exemplo extremamente conhecido, mas muitas vezes negligenciado, e frequentemente minimizado, ou destratado em redes sociais. Vamos visualizar a ideia em torno da obra “Fonte” de Marcel Duchamp.


A fonte, como a obra de arte mais conhecida pelo dadaísmo — movimento já conhecido pela sua ruptura com a ideia de arte e do tratamento que ela recebia — é perfeita para exemplificar esse fato. Duchamp decidiu mostrar que qualquer objeto poderia ser considerado como arte, desde que fosse validado como. Ao introduzir um mictório num museu de arte, colocar um título “Fonte” e ter a validação e a certeza de que, todos que ali entraram na exibição trataram o objeto como arte — simplesmente por estar dentro de um lugar de artes. Desse modo, o debate estético, ou até mesmo autoral, já se faz ultrapassado, porque, tudo que o objeto artístico precisa é de validação.

O desenho de uma criança naturalmente não é objeto de arte, mas nas minhas últimas visitas ao MON (Museu Oscar Niemeyer), algumas exibições mostravam desenhos infantis nas suas exposições, e as pessoas paravam para vê-las, como se não houvesse diferença entre elas e as obras ali feitas por adultos, ou pelo próprio autor do desenho depois de adulto.

Na música, é possível usar a composição 4 '33’’ de John Cage como exemplo. São exatamente 4 minutos e 33 segundos de silêncio, não há interferência, não há significado, não há estética. Ainda sim, é possível encontrar vídeos no youtube da reação das pessoas quando essa composição foi exibida em teatro (espaço de validação artística), e ninguém questionava a obra de ser, ou não, uma obra de arte.

Por que a validação do Grammy importa tanto?

Levando em consideração o que foi dito anteriormente, a validação do Grammy importa, principalmente, porque existe a necessidade de algo que valide, ou não, esse produto feito por IA — ou, nesse caso, música — como arte, ou não. E nesse caso, o que pode dar essa validação mais do que o Grammy, hoje em dia?

Porém, eu gostaria de me estender aqui um pouco mais no que tange o questionamento da Grimes acerca do assunto: Por que a gente se importa tanto com o Grammy?

De fato, é a premiação que, no mundo da música, poderia ser comparada até mesmo ao Oscar (Mas dessa vez eu não entrarei no mérito de “Por que nos importamos tanto com o Oscar?”) — e, nesse sentido, é até quase óbvio a gente se importar. Se algo tem tanta visibilidade, é necessário saber a opinião “especializada” acerca da arte que eles estão dispostos a premiar e, portanto, criticar.

Mas o assunto vai mais longe do que isso, não é sobre a informação, pois essa, a gente realmente não deveria nem questionar a busca, mas sobre a validade que algo ganha ao receber um mero prêmio. Claro que tudo isso tem a ver com bases estruturais, a indústria capitalista e até um certo sentido de manutenção do status quo (músicas e álbuns americanos sempre são os premiados, sempre os produtos mais normativos com a sociedade americana também). Mas, para além disso, tem a ver com: interesses.

Nesse sentido, o questionamento da Grimes é extremamente relevante, qual seria o interesse do Grammy para invalidar essa produção de IA nesse momento? Por quanto tempo isso vai perdurar? O quão popular é um álbum, ou música em Inteligência Artificial nesse momento para que essa decisão seja feita com tamanha urgência?

Claro que essas são todas perguntas que sequer são possíveis de serem respondidas no momento que esse texto é escrito. Mas o futuro aguarda mudanças, e isso é um fato.


É melhor, então, uma categoria só para músicas feitas por IA no Grammy?

Essa pergunta também foi levantada pela artista Grimes, ao comentar o assunto. A priori, é impossível, de fato, dizer o que deveria ou não ser feito. É inevitável crer que, de agora em diante, é praticamente impossível pensar num mundo em que as músicas em IA continuarão sendo “underground”. É apenas questão de tempo para o mainstream se apossar disso.

Assim, considerando essa inevitabilidade, e considerando o que foi dito sobre a necessidade da validação artística, é possível que, a curto prazo, passe a existir uma categoria para músicas de IA. Porém, como é também uma questão de tempo para a própria “academia” da música passar a validar essa forma como arte, como parte do meio — não será em tão longo tempo que essa validade vai dissolver as diferenças entre: música feita por IA e músicas “orgânicas”.

Não considero isso um caos de todo, por pensar nas possibilidades até mesmo na produção das músicas experimentais, mas certamente a apropriação desse método pelo mainstream não vai ser algo que eu gostaria de pagar para ver.


Quem é o autor de uma música feita em Inteligência Artificial?

Antes do fim do texto, ainda se faz necessário pensar na música (e nas artes em geral) de IA não só de forma enviesada e ética, ou estética, mas também jurídica. Não temos o aparato necessário para lidar com a produção das inteligências artificiais, o Estado capitalista está perdido e vai ter que começar a lidar com isso muito em breve.

Como exposto no início do texto, a Grimes cobra 50% de royalties, para qualquer pessoa que decida utilizar sua voz em IA para produzir uma música autoral… E nesse caso, eu pergunto: Por que? De quem é a autoria dessa nova canção? A música não deveria ser considerada nova? A voz pode até ser dela, mas todos os outros aspectos, e até a forma como a pessoa decide usar essa voz, não são decisões autorais dessa outra pessoa? O desenvolvedor do software da IA, não pode decidir cobrar algo pelo uso de seu software também?

Essa discussão fica ainda mais longa quando falamos sobre artes plásticas. Quando pedimos para um software gerar uma imagem, geralmente ele usa como base outras obras de pequenos artistas, pequenos autores, que, muitas vezes, sequer sabem que estão tendo suas obras utilizadas. Quem é o autor? Qual é o processo judicial envolvendo isso? Quem pode lucrar com isso?

Do ponto de vida artístico, mesmo essa decentralidade é algo positivo, do meu ponto de vista, a destruição do autor é cada vez mais necessária para a arte atual — mas num vido dominado pelo capitalismo, existe como um artista sobreviver sem seus royalties? Existe uma possibilidade de destruir a arte das amarras capitalistas?

Ainda temos um longo caminho a percorrer.
Tiago Araujo

Graduando em História. Gosto de música, cinema, filosofia e tudo que está no meio. Sou editor da Aquele Tuim e faço parte das curadorias Experimental, Eletrônica, Funk e Jazz.

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