Clássicos do Aquele Tuim | Mudança dos Ventos (1980)



★★★★☆
4/5

“Dá-me um pouco de festa, não esta / Que é demais pro meu anseio”. Dinahir Tostes Caymmi, de nome artístico e carinhoso “Nana”, herdado de sua relação com seu pai — o titã cultural Dorival Caymmi — parece sempre no limiar entre o confortável e o desafiador, excitante. Sua voz de contralto, rouquíssima, sempre dá a ideia de limite, de estar perto de quebrar. Nana é claro, nunca desafina — parecendo incapaz de tal mortalidade musical. Embora tenha sido muitas vezes considerada uma das mais belas vozes brasileiras, a artista não viu o decolar de sua carreira, ao menos não na mesma magnitude que algumas de suas pares, entre elas Maria Bethânia e Gal Costa — e sempre esteve quase que em segundos pensamentos da MPB, num cargo de classe, elegância (Nana tem no catálogo várias aberturas de novelas de Manoel Carlos) mas com menos brado, menos brilho.

Mudança dos Ventos, de 1980, é seu sétimo álbum, mas apenas o segundo a ter um título que não o nome de sua realizadora (Renascer, de 1976, é o primeiro não autointitulado). É o primeiro a ter em sua capa uma Nana mais serena, alegre — os outros sempre a apresentavam num tom etéreo, misterioso. O nome, fruto da homônima canção de Ivan Lins, que abre o LP, também diz sobre alterações, sobre querer mais. Pode-se dizer que a mitologia Nana começou ali, apesar de trabalhos anteriores tão grandiosos quanto. É ali que a Dama da Canção se faz presente em sua altivez empática, numa interpretação um tanto taciturna, um tanto tagarela do que acontece à sua volta.

A canção homônima ao título do álbum, “Mudança dos Ventos”, começa num tom sereno, melancólico: “Ah, vem cá meu menino / Pinta e borda comigo / Me revista, me excita / Me deixa mais bonita”, é exaltação do que pode ser, mas não é, a esperança no ente de uma mudança que só pode vir de si, jamais do interlocutor. “Canção da Manhã Feliz”, a faixa seguinte é justamente o contrário: um relato mal humorado de insatisfação com os excessos de uma manhã — feliz, sim — mas que deveria talvez ter sido mais modesta com suas qualidades.

“Pérola”, de Sueli Costa e Abel Silva, é autoconsciente com o processo de composição, com sua metalinguagem. Para os compositores não há força motriz maior que uma tristeza, um incômodo na hora de se realizar arte, tal qual a ostra quando envolve de nácar um grão de areia que incomoda. Nana também interpreta canções de seus dois irmãos, Dori e Danilo, ambos escritores hábeis e com carreiras sólidas de composição de melodia e letra.

Paradoxalmente, talvez as três últimas faixas do LP sejam o primor de todo o álbum. “Mistérios”, “A Mó do Tempo” e “Essas Tardes Assim” completam uma mini-trilogia dentro da obra, numa crescente de dúvida, contentamento e, finalmente, em “Essas Tardes Assim”, felicidade. São todas cantadas com uma certa tranquilidade, como quem sabe que no final a felicidade espera, apesar dos revezes a “solidão demais” de “A Mó do Tempo” tem seu fim numa tarde laranja, com vestidos azuis, cheiros de rosa, cravo, jasmim. Enfim alegre, apesar de tantas mudanças

É claro, o cerne, o âmago de Mudança dos Ventos é a voz de Caymmi. Pouquíssimas vezes se viu tamanha desenvoltura ou coloratura para emoções que sozinhas, são apenas palavras num papel, um apelo ao vácuo, uma torcida para que alguém as pegue, leia, entenda. Nana faz exatamente essa função: ela entende o que canta e por isso, concomitantemente, o que ela canta se torna mais vivaz, mais pesado emocionalmente — único. Sua rouquidão característica confere aos versos uma aura fragilizada, um quê de emoção impassível, quando enuncia “É como se despertasse de um sonho / Que não me deixou viver” em “De Volta ao Começo”. Escrita por Gonzaguinha, a sensação de desesperança cresce até o refrão, carregada por sua vocalidade emocional, e ali explode seus sentimentos guardados: “É como se eu descobrisse / Que a força esteve o tempo todo em mim / E como se então, de repente / Eu chegasse ao fundo do fim”.

É o êxtase de Nana. Talvez ali estivesse sua mudança tão requerida, tão enunciada por olhares ao redor e percepções. Sua foto na capa, com ar nostálgico, olha para trás, como se vislumbrasse algo passado, “Uma tarde morrendo é um dia chegando” ela canta no final de seu álbum — Nana já é outra, sua arte é outra — nos resta sentir os ventos mudados no rosto.

Selo: EMI Brasil
Formato: LP
Gênero: MPB
Pedro Piazza

Pedro, 21 anos. Cursa psicologia e tem uma quedinha pelas abordagens mais abstratas. Ama todos os tipos de arte e em especial a música, que guarda um lugar essencial em sua vida, principalmente as mais barulhentas. Parte da curadoria de MPB e hip-hop no Aquele Tuim

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