Crítica | Dennis



★★★★☆
4/5

A questão em torno do conflito ético de separar o artista da obra nunca esteve tão em alta como nos últimos anos. Criar um distanciamento entre o produto, o meio do qual foi feito e o seu autor é algo que exige muito mais do que boa vontade: é um exercício mental complexo. Então imagine como deve ser, numa lógica semelhante, tentar separar um produtor musical do fruto do seu trabalho? Para nomes como Sega Bodega, isso é quase impossível.

O artista, que já trabalhou com Caroline Polachek, Shygirl, Björk e Eartheater, é um daqueles colaboradores que marcam uma determinada época graças não só ao resultado de sua habilidade, mas, principalmente, à sua assinatura que alcança múltiplos efeitos quando assume posições como as que assumiu em obras de certa relevância na música pop. Mas, além de prestador de serviços, Sega também é um criador muito interessante, e seus álbuns recentes, Salvador, de 2020, e Romeo, de 2021, são a prova perene de como ele se dedica a dar vida aos seus próprios desejos.

E, mesmo sendo como testes de sua assinatura como produtor, os trabalhos ainda ofereciam uma certa confusão de princípios: às vezes soavam como resquícios de um ano cheio de trabalho, ao qual ele teve pouco tempo para se dedicar a qualquer coisa (Salvador); às vezes soava muito estilizado, como se, de um momento para o outro, ele decidisse focar em alguma coisa e depois concentrasse todas as suas forças nisso por mais que o resultado fosse, de certa forma, um tanto quanto obstante ao natural (Romeo).

Dennis, por sua vez, é o equilíbrio entre essas duas forças. É uma afirmação de ideias, mas também uma carta de apresentação ao futuro, em que Sega reivindica o seu espaço neste pop estranho que tem ajudado a construir. O conjunto de abertura, “Coma Dennis” e “Adulter8”, aglutinam o álbum como um todo: são peças cujas vocalizações são gélidas e o som é estridente, constituído por meia dúzia de ringtones distorcidos. Enquanto “Kepko”, e sua estruturação caótica, que percorre batidas secas e vociferações em velocidade irrealista, expande ainda mais as noções de seu próprio espaço — é como se Sega se reproduzisse em uníssono, e a forma como a música começa, ela também termina. Os disparos que a tornam rápida são também o combustível que a quebra em dezenas de fragmentos, com sequenciadores ardilosos que ultrapassam barreiras de produção (há trechos que sobressaltam a própria construção do som, como se um tecido elétrico baseado em alguma nostalgia pós-anos 2000 surgisse e cobrisse tudo).

A sequência “Dirt”, então, tenta equilibrar melhor os pontos de culminação entre presente e passado; é uma dosagem maior do eurodance/pop que surgiu na faixa anterior, mas que aqui ganha toques atmosféricos mais intensos. De forma semelhante, “Deer Teeth” é colocada em apoio a uma menor aplicabilidade de mixagens, o produtor foca na texturização, com uma explosão instrumental após a segunda metade, quase ritualística, com espaçamento mais definido entre as melodias, que também soam nostálgicas. Porém de uma forma que lembra suas intenções terceirizadas, como quando ele cria coisas para outros artistas de acordo com contextos específicos.

É façanhoso, porque Dennis parece conter um pouco de tudo: o dance arriscado de Shygirl (“Dirt”), o pop europeu de Caroline Polachek (“True”) e a folktrônica de Eartheater (“Set Me Free, I’m an Animal”). Mas é, acima de tudo, um produto de Salvador Navarrete. Ninguém é obrigado a separar o produtor da sua criação, principalmente quando as semelhanças estilísticas estão sempre presentes para dizer que isso é quase impossível. E não há, portanto, melhor maneira de ver isso do que um fragmento, um enxerto do que foi produzido com a intenção de criar memórias com um certo teor de inovação, construídas para si mesmo ou para servirem de vitrine do seu empenho. Esse é Dennis.

Selo: Ambient Tweets
Formato: LP
Gênero: Eletrônica / Pop
Matheus José

Graduando em Letras, 23 anos. No Aquele Tuim, faço parte das curadorias de Jazz, Música Independente, Eletrônica e Experimental.

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