Crítica | Terra do Kn, Vol.2


★★★★☆
4/5

O funk, independente de seu maior polo de experimentação e criação num nível quase industrial em São Paulo, segue se expandindo em uma órbita própria de vanguardismos que são, sim, muito acessíveis — e DJ KN DE VILA VELHA entende bem essa dinâmica. O produtor capixaba reúne o melhor do funk que se espalha pela região Sudeste do país sem recorrer aos signos já bastante estabelecidos do funk paulista, especialmente aqueles que orbitam em torno do Mandela. Por isso, seu novo álbum, Terra do KN, Vol. 2, parece estreitar laços com sons que vêm de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, misturando-se ao funk do Espírito Santo sem que este perca sua principal marca: o beat fino.

É uma relação muito interessante, pois o que há do funk do RJ aqui é nitidamente a estrutura do beat serie gold, cuja repetição é extraída para que a base do beat fino e do funk de BH entre por cima — mesclagem evidente em “Essa Daqui Ninguém Lançou” e “Motelzinho 2”, dois dos vários momentos do álbum em que o beat mais sombrio de BH pode ser notado, sendo substituído por batidas mais limpas, que se opõem aos graves mais pesados e às caixas estouradas, também mais agressivas, sem deixar de lado timbres eletrônicos que soam justos e adequados ao contexto do funk. E, nesse sentido, DJ KN é um verdadeiro mestre: não basta apenas usar referências interestaduais e suprarregionais, é preciso manter as características locais — e ele faz isso como ninguém.

Essa sua forma de criar é extremamente pegajosa, principalmente porque as acapellas dos MCs — diferente do funk paulista atual — demonstram maior preocupação com a melodia, ainda que repetitiva. Por isso, muitas vezes os vocais são modificados para soarem mais melosos, agudos e com elevações de entonação, assumindo uma posição similar à de alguns clássicos do funk paulista mainstream da década de 2010, como MC Livinho, MC Pedrinho, MC Rodolfinho e MC Don Juan, os chamados MCs mais ‘vocalista’. Isso cria um contraste surreal entre os elementos mais suaves do beat fino e os vocais modificados (“Com Esse Popô”), também suaves de certa forma — o que, por sua vez, dá uma nova perspectiva para os temas de putaria, aproximando-se do que DJ Anderson do Paraíso fez no funk de BH.

A diferença, porém, é que DJ KN é mais pop do que aparenta. A faixa de abertura, “Sentar pro Trem”, por exemplo — ainda um dos maiores hits do ano — ficou conhecida e ganhou popularidade primeiro por ser quase um MTG, usando apenas a melodia de “Set Fire to the Rain”, da Adele. Não durou muito: no auge das reproduções, a música levou um strike. O que, no fim das contas, não foi tão ruim, já que a versão do álbum é infinitamente melhor, mais alinhada à linguagem de KN ao propor essas modificações vocais e essa mistura de beat fino, beat serie gold e funk de BH.

Outro grande destaque de Terra do KN, Vol. 2, que não poderia faltar, é a faixa “Vem no Vapo Vapo”, com DJ Ws da Igrejinha, que torna ainda mais literal o laço do funk capixaba com o de BH (sem mencionar também a presença de MC Pedrin do Engenha em "Deixa Rolar" e "Vai Rolar o Baile no Morro"). A faixa traz os uivos de lobisomem e a clave dura, minimalista, típicos do Ws. Conforme avança, as acapellas vão revelando o motivo de serem um destaque à parte: um conjunto de versos diferentes entre si, mas que dialogam perfeitamente com toda a estrutura construída através dos tons cantados, fluxos rápidos e vocais graves.

Essa malemolência criativa mostra como DJ KN é extremamente perspicaz em sua produção e composição — num nível quase inédito no funk capixaba —, porque consegue fazer tudo isso e ainda se aliar a uma espécie de mainstream, o que explica a quantidade de hits que ele acumulou em tão pouco tempo. É difícil decifrar sua fórmula, justamente porque ele se recusa a segui-la à risca. Os momentos de Terra do KN, Vol. 2 mais focados no som local — seja o beat fino ou outros aspectos do funk do ES — são o elo que KN constrói para, então, poder se relacionar com o que vem de fora. É como se ele organizasse sua casa para receber a visita e, assim, a conversa fluísse com mais cortesia — e é exatamente isso que ele faz aqui.

Selo: TDK Rec
Formato: LP
Gênero: Funk

Matheus José

Graduando em Letras, 24 anos. É editor sênior do Aquele Tuim, em que integra as curadorias de Funk, Jazz, Música Independente, Eletrônica e Experimental.

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