Crítica | Demilitarize


★★★★☆
4/5

O entorno de Demilitarize, álbum do produtor angolano Nazar, tem um pano de fundo tão denso quanto a mistura instrumental eletrônica que é feita com seus vocais, os quais passam longe de serem reconhecíveis — embora haja uma aproximação ao jeito sutil de cantar de artistas como Frank Ocean. Isso porque o disco foi concebido a partir de uma experiência de quase morte, em meio a um contexto de guerra e à dor de ver aspectos básicos da vida — como o amor — sendo dificultados para você.

Nazar cria canaletas que guiam suas ideias em diferentes direções. O kuduro, que representa suas raízes musicais e culturais, é atravessado por fragmentos percussivos como baterias sintéticas e moduladores que geram efeitos de ondas, que ora amplificam, ora diminuem a intensidade dos elementos por ele explorados e que estão próximos de uma armação que não chega a ser techno, mas é tão viva quanto — uma combinação perfeita com os vocais do artista.

Na verdade, há um motivo para seus vocais chamarem tanta atenção por serem diferentes do habitual e por soarem arrastados, sufocados pelos sons que ele próprio cria: Nazar esteve gravemente doente, quase morreu, após retornar a Angola e contrair tuberculose. É um fato que intensifica a maneira como se olha para este álbum, o que consequentemente nos faz absorvê-lo com maior cuidado — pois essa informação, arbitrariamente, faz com que o objeto deixe de ser apenas uma obra musical, e passe a ser visto como algo próximo de um testemunho de vida.

Sob essa mesma ótica se desenvolve a temática central: uma revisitação de Nazar à guerra civil que exilou sua família na Europa. É também sua forma de enfrentar traumas – a necessidade de deixar tudo para trás, ir em direção ao desconhecido –, reviver a força dos seus antepassados e estabelecer novos rumos para a própria vida e carreira. O mais impressionante é a forma com que isso é feito, partindo de um material que torce e contorce todos esses símbolos por ele amalgamados aqui — do kuduro às suas dores físicas, de saúde e de identidade.

Na faixa que melhor simboliza o álbum, “Open”, ele canta: “Suppressing the pain won’t mean it will pass”, como se quisesse falar para si mesmo que, não importa quanto tempo passe, em seus pensamentos ainda existirão as memórias sensíveis e delicadas que remetem as dores citadas anteriormente. Em outro momento da música, questiona: “Asking myself, who I really am”, tratando diretamente da sua identidade em meio a esse deslocamento. São trechos como esses, cantados com uma emoção cortante e reveladora de suas feridas, que mostram como o artista vai além da mera exploração eletrônica.

E é nesse ponto que Demilitarize cresce ainda mais. Pois, ao carregar muitas referências que se voltam para o R&B alternativo – e por isso o álbum pode remeter muito à fluidez de uma estrutura eletrônica mais fluida, com timbres reverberados, semelhantes aos de Kelela –, ele vai além do canto, também tomado por uma atmosfera densa e serena que expressa fortemente a maneira como Nazar percorre todo esse caminho, apresentando algo que parece novo – e de fato é, já que nada soou assim antes.

Selo: Hyperdub
Formato: LP
Gênero: Eletrônica / Kuduro

Matheus José

Graduando em Letras, 24 anos. É editor sênior do Aquele Tuim, em que integra as curadorias de Funk, Jazz, Música Independente, Eletrônica e Experimental.

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