
4/5
Eu confesso: o que mais me chamou atenção nesse álbum, antes de escutá-lo, foi quando eu li em alguns lugares a presença do termo “Tropicanibalismo” para descrevê-lo. Logo a curiosidade veio e fui pesquisar sobre o que significava o termo; cheguei a uns e outros artigos que falavam sobre o assunto — que eu recomendo muitíssimo que leiam, caso saibam espanhol. Mas, resumindo muito, para quem não arrisca ler e quer continuar a crítica: é um movimento musical, inicialmente universitário, associado a uma revisão da cumbia na música colombiana, que não renega suas raízes, mas cria novas formas canibais de se relacionar com ela. As músicas têm, normalmente, caráter de protesto nas letras e buscam se relacionar de forma distinta com essa produção de identidade cultural por meio da música.
Como todo mundo é bairrista (e eu me permito ser, porque o próprio álbum tem trechos em potuguês na música “Croissant”), é difícil não relacionar esse tipo de movimento ao que aconteceu no Brasil com a tropicália — e ali essa questão “canibal” era muito intensa, apoiada no manifesto antropofágico do Oswald de Andrade — e mais recentemente com a nova vanguarda paulistana. Alguns intelectuais tentam, até hoje, pensar uniformidades e semelhanças na alegria e no sofrimento dos países latinoamericanos, e talvez a chave nem seja essa, ou não seja produtivo, mas é difícil de não simpatizar automaticamente com modos de resistência cultural tão semelhantes aos que fazem parte da nossa história.
O movimento colombiano aparece em Tatekieto de um jeito especial, com um apreço igual entre o passado e o futuro, ou melhor, destruindo barreiras de passado e futuro estanques. O álbum é feito em parceria entre duas bandas, Pulcinella, uma banda francesa mas associada ao jazz e prog rock, e a banda colombiana La Perla, que se relaciona com vários gêneros da música alternativa colombiana. Juntos eles assinam o disco como PulciPerla. Somente com essas informações é possível, de antemão, começar a pensar a parte canibal do movimento em que o álbum está inserido. E sim, o desenvolvimento é óbvio a partir daí: jazz e cumbia, prog e música popular colombiana tomam conta do LP.
Não é pela obviedade, porém, que não há nuances que valem a pena serem comentadas. A começar que nenhum dos dois é tradicional demais, talvez porque isso nem seja possível. O jazz é dançante de um jeito especial, não é ao mesmo estilo que se pensa do fusion, que usa as repetições e ritmos do rock para construir essa pista de dança. Na verdade, a impressão é que o jazz costura os ritmos tradicionais colombianos, inserindo uma liberdade de instrumentalização que permite dissolver esse passado estanque de ambos os gêneros.
Não pense, contudo, que a cumbia colombiana e o bullerengue estão no álbum para meramente servirem de suporte para acréscimos de jazz; eles também são construídos de novas formas, entre instrumentos eletrônicos, sintetizadores, flows de hip hop e guitarras. O que se entende, portanto, é que mesmo na forma, esse canibalismo funciona como um enfrentamento à ideia tradicional de “evolução musical”, os gêneros históricos se confundem, se entrelaçam e dão origem a uma linguagem própria.
As letras não ficam para trás nessa salada-mista, todas as canções passam do lúdico ao realista em termos de letra, e muitas vezes são os dois ao mesmo tempo. As críticas são satíricas, engraçadas e ao mesmo tempo frontais, protestos sinceros. Claro, isso não é uma coisa separada das outras no álbum, pelo contrário, a música, descrita anteriormente, também se comporta da mesma forma. Afinal, a rigidez livre do jazz denota uma seriedade, que ao mesmo tempo é uma dança constante, em espiral trazida pelos ritmos colombianos. Para perceber esse tom, basta escutar a sétima faixa, “Tabogo”, ou “Croissant”, que ainda tira um sarro com os próprios franceses presentes aqui.
Tatekieto é, portanto, um álbum contemporaneíssimo, pela sua vontade de romper com a forma da música tradicional, com a forma tradicional da compreensão do tempo e do que deve se pode definir a respeito da América Latina a partir disso. Esses são elementos que foram, e seguem sendo, muito importantes para a resistência cultural do sul-global. E é também um dos melhores álbuns do ano até o momento.
Selo: Prado Records
Formato: LP
Gênero: Música Latina/Hispanófona, Música alternativa Latinoamericana, Tropicanibalismo