Crítica | Blurrr


★★★★★
5/5

Enquanto ouvia Blurrr, fiz uma brincadeira no meu Instagram dizendo que o legado de Arthur Russell estava em boas mãos. E, por mais inofensiva que essa brincadeira possa ter sido, há um fundo de verdade nela. Desde sua colaboração com Dean Blunt no ano passado, Backstage Raver – que nomeamos um dos melhores álbuns do ano e da década de 2020 até agora –, ficou claro como Joanne Robertson busca lidar com suas fragilidades: um expurgo total de seu âmago, controlado por acordes que se arrastam com uma densidade modesta, mas que sempre conseguem dizer mais do que aparentam. Ela é o tipo de artista que domina as emoções e o que fazer com elas como ninguém, e o faz através de uma intersecção de música experimental, minimalismo, folk e intimidade invasiva quase incomparável. Você encontra tudo isso em Blurrr, e não há como escapar dele.

No destaque “Friendly”, seus sete minutos de duração se esparramam por acordes de violão que parecem durar uma eternidade, como se Joanne os usasse para expor um sentimento que sua voz, sozinha, não conseguisse traduzir. É um golpe tão direto quanto os segundos que, de alguma forma, passam rápido. Ela cria uma espécie de estrutura com vocais e instrumentais, que vão se interseccionando até o fim, como numa gravação ao vivo, invertendo o mecanismo e forçando a atenção aos detalhes além do som, do que pode ser facilmente captado. Essa relação simbiótica ganha ainda mais força em instantes como “Always Were”, faixa em que o violoncelista Oliver Coates dá os primeiros sinais da grandeza colaborativa entre eles. É um pouco difícil descrever o que criam aqui. A voz de Joanne se perde com facilidade, caminha rumo a um canto sombrio, envolto por uma névoa que dissolve o sentido exato de suas palavras, fazendo-as soar como os murmúrios de um fantasma do lado de fora da janela. “Oh I don't know what to, where to go”, canta ela, enquanto os tons empoeirados de seus acordes, junto aos de Coates, tão sensíveis quanto sua exposição ambiente, tornam-se cada vez mais granulados, sombrios, vivos… E você só a ouve dizer, quase no fim:

I see your eyes


É um dos momentos mais brilhantes da música nesta década. Uma declaração de força, um instante que dispensa qualquer colocação além do sentimento tocante, de sobriedade e, ao mesmo tempo, solidão. É uma beleza que se expande por todo o álbum, ora afinando as cordas doces do violão, ora acentuando as da guitarra, como se quisesse propor uma intersecção desses instrumentos sempre associados a gêneros de grandes nomes, mas tratados com certa formalidade que aqui inexiste. O improviso se torna parte dos degraus que Robertson usa para criar algo só dela. “Peaceful” exemplifica isso muito bem, com a delicadeza das melodias viajando pelo tempo, arrancando de Joni Mitchell uma certeza que ela tinha sobre o bucolismo do desconhecimento, do anonimato.

A voz de Joanne segue por esse mesmo caminho. Não há tratamento, a não ser o próprio volume com o qual ela canta, e Oliver busca acompanhá-la. “Grown”, outro momento marcante entre os dois, direciona essa vontade de ser imperceptível para diferentes lugares, em que a voz dela parece subir e descer de tom, enquanto o toque dele sinaliza a hora de avançar ou de retroceder. Você pode até se questionar se eles sabem o que estão fazendo, já que tudo em Blurrr funciona com uma força de princípio escoante, quase empírica. A verdade é que não precisa haver uma razão, e isso tem muito a ver com a complexidade criativa de Joanne, replicável apenas dela por ela. Para muitos, isso pressupõe que seus trabalhos são indecifráveis, e é verdade, mas, para mim, nada soa tão naturalmente descritivo quanto essa busca por sinceridade. Dizer, tocar, o que nós inconscientemente não conseguimos acessar, algo além do que nos é apresentado através de um formato cuja linguagem é cada vez mais compactada. É por isso que a sua aproximação com Arthur Russell – e de qualquer artista de música experimental neste contexto – não se limita ao estilo, meio pelo qual ambos parecem pertencer num grau de diferença notável, mas ontológica, pois concebem a canção – e tudo o que há nela: melodia, letra, impressão – como espaço poroso, aberto tanto para o que chamariam de erudição, quanto pela facilidade que temos de absorver suas ideias, que pairam entre confissão e abstração, intimidade. É de alguma forma muito familiar. Talvez isso seja apenas música.

Selo: AD 93
Formato: LP
Gênero: Folk / Indie Folk, Folk Psicodélico
Matheus José

Graduando em Letras, 24 anos. É editor sênior do Aquele Tuim, em que integra as curadorias de Funk, Jazz, Música Independente, Eletrônica e Experimental.

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