
★★★★☆
4/5
4/5
Scarlet foi o primeiro registro de Doja em que percebia uma procura por um conceito e identidade artística mais clara, buscando aqui se aproximar de aspectos do hip hop da costa oeste dos EUA, se encaminhando por vias que se afastavam de uma perspectiva pop que sempre foi norte para seus projetos artísticos. Ainda assim, Scarlet tropeçava em algumas faixas cansativas, mesmo que fosse o disco mais interessante de Doja Cat. É interessante fazer essa linha do tempo para mostrar como, por mais que sempre tenha visto potencial na rapper, nenhum trabalho artístico dela até então conquistou uma qualidade acima da média.
Vie, portanto, é uma evolução artística em diversos sentidos: tanto em construir um conceito musical concreto fascinante e, também, em como ela executa muito bem suas ideias artísticas. Esse disco se situa fortemente no ambiente pop dos anos 80, resgatando o synth funk, em uma forma que revive a essência de grandes artistas do gênero, especialmente Janet Jackson, com aspectos que remetem ao seu álbum Control em vários momentos do disco — “Cards” e “Jealous Type” principalmente —, também apresentando muitos flertes com o freestyle e o synthpop, além de músicas marcadas por um som oitentista carregado de influências soul e funk do sophisti-pop.
O álbum alinha isso a elementos musicais contemporâneos, introduzindo-os a cenas mais atuais do R&B contemporâneo e do hip hop, construindo uma obra que dialoga de forma muito divertida com suas referências de décadas passadas e o cenário da música popular atual. “Cards”, por exemplo, tem baterias arrebatadoras e grooves funk envolventes do synth funk junto à uma entrega despojada de Doja, que reflete a energia das artistas do gênero na época, enquanto “Jealous Type” é outra abordagem do mesmo estilo, porém se aproximando mais da influência do freestyle, com suas baterias eletrônicas dançantes características.
Essa influência, alinhada ao tipo de estrutura musical que Doja adota, soa muito bem inserida nesse contexto musical, com seu verso de rap sendo bastante reminiscente à construção musical presente em diversas produções do freestyle que adotavam também o rap dentro de uma produção dance-pop. Essa atenção aos detalhes que marcam os clássicos dos estilos resgatados por Doja Cat evidencia como ela atende muito bem às referências que está trabalhando e demonstra não apenas buscar conhecer em sua superfície, mas mergulhar nesse território. Como faz em “Gorgeous”, o melhor exemplo da mistura de aspectos dos anos 80 com a produção musical atual, misturando sintetizadores oitentistas com R&B alternativo e batidas de trap ocasionalmente. É um contraste interessante de “AAAHH MEN!”, essencialmente por tornar evidente o caráter sujo de seus grooves ao mesmo tempo em que dialoga perfeitamente com a performance descontraída de Doja, que nesta altura dispensa rótulos pré-definidos de rapper e cantora.
Mesmo quando Doja Cat vai totalmente ao hip hop e R&B contemporâneo, se afastando da ideia que a artista se encaminha na maior parte do tempo de referências ao pop da década de 80, ela continua a apresentar seu catálogo de maior bom gosto. “Acts Of Service” e “Make It Up” são abordagens do trap soul que constroem uma atmosfera sensual formidável e, além disso, esses momentos não se contrastam de maneira negativa com o restante de Vie, já que mesmo representando uma sonoridade diferente, compartilham de sensações similares, especialmente com o uso de sintetizadores e sensibilidades do R&B. Nunca Doja Cat conseguiu antes em sua carreira fazer um registro tão consistente e animador.
Selo: RCA
Formato: LP
Gênero: Pop / Dance-Pop