Crítica | Medio Grave


★★★★★
5/5

Um dos áudios virais mais populares do TikTok neste ano foi o da música “São Paulo”, da “cantora” de inteligência artificial generativa Tocanna. A faixa, uma paródia de “Empire State of Mind”, de Jay-Z com Alicia Keys, levantou debates sobre direitos autorais e o uso de novas tecnologias no fazer musical. Versões, covers e paródias não são novidade no contexto musical brasileiro e mundial, especialmente quando pensamos em gêneros periféricos (e extremamente populares), como é o caso do forró, em que as tecnologias da pirataria e da gambiarra seguem resistindo às noções ocidentais de propriedade intelectual. Enquanto as big techs nos vendem a inteligência artificial como um novo paradigma – inclusive na música –, são os condenados da terra que vêm criando e aperfeiçoando suas linguagens por meio da subversão. E é exatamente isso que a mixtape Médio Grave consegue não apenas documentar, mas também articular através do som.

JLZ, produtor e beatmaker de Águas Lindas, une forças com GG Albuquerque, jornalista e crítico musical pernambucano, para apresentar o léxico inventivo do forró e do piseiro e sua mais nova tecnologia do som automotivo. Enquanto JLZ possui uma obra diversa, explorando diferentes vertentes da eletrônica por suas diásporas e “afro coisas”, GG vem se consolidando nesta década como um divulgador indispensável do pensamento sobre os gêneros musicais entendidos como periféricos. Sob o vulgo “volume morto”, GG assina matérias e entrevistas que evidenciam o pensamento intelectual de artistas que, embora alcancem números gigantescos, continuam sendo rotulados – no crivo da indústria – como regionais. Com seu trabalho, ele construiu a ponte entre DJ K e o selo ugandês Nyege Nyege Tapes (como documentado no filme Terror Mandelão, do qual é um dos diretores) e agora atua diretamente nesta mixtape para o selo.

Batizada com o mesmo nome da performance que JLZ e GG apresentaram no Instituto Ling em 2023, Médio Grave, como o título sugere, explora o pensamento eletrônico das frequências médias que movimentam os paredões do Nordeste. A obra é dividida em duas faixas, A e B, o que se justifica por ter sido concebida para o formato físico da fita cassete, com 15 minutos destinados a cada lado da fita magnética. Já na primeira peça, “Desce Mais um Pouco, Dá Uma Descidinha (médios alterados)”, do Forró de Qualidade, a mixagem eleva e reverbera a caixa cachorro, fazendo com que suas frequências se choquem com os vocais e dificultem a compreensão da letra. É como no áudio que surge mais adiante: “mas que diabo de música é essa aí que o cabra só escut- só entende o refrão?”, também presente na faixa A. Esse estranhamento é anunciado logo no início da mixtape: “Pedimos que afaste, pois o médio incomoda”, e vai na contramão dos modelos radiofônicos de mixagem, que priorizam os vocais à frente dos outros elementos da mix. Não se trata de erro: é criação consciente. JLZ e GG, assim como os produtores das faixas que mixam, sabem que o pensamento por trás dessas frequências está nos paredões.

Um dos pontos que mais chamam atenção é a presença de memes que circulam em páginas de forró e vaquejada no Instagram. Essas páginas funcionam como importantes canais de divulgação das faixas do forrozinho, ao lado dos atualizadores de pendrive e CDs – como se ouve na tag “Emanuel CDs”, logo após a primeira música – que curam e comercializam as faixas estouradas do gênero. A presença desses áudios, além de acrescentar humor, faz o ouvinte comungar dos espaços de escuta do forrozinho, como se a mixtape existisse simultaneamente nos paredões e nos perfis de vaquejada. É um ambiente convidativo e familiar, permeado por samples de Katy Perry, Beyoncé, Shakira, Zezé Di Camargo & Luciano, entre outros, que ao mesmo tempo provocam estranhamento ao revelar novas formas de pensamento musical trazidas do funk. Veja como os loops, as acapellas e o desempenho de frequências específicas, pensadas para o contexto das pistas, são técnicas incorporadas ao piseiro na criação de algo novo, estranho e que bate diferente. Você se vê em um rolê desorientador, tentando se localizar por fragmentos sonoros familiares, mas agora recontextualizados. Só resta se render ao caos meticuloso que esses intelectuais da baixaria criaram e, por fim, se jogar no piseiro.

Selo: Nyege Nyege Tapes
Formato: Mixtape
Gênero: Experimental / Forró, Piseiro
gambito de rafinha

Formade em Comunicação Social. Tem uma instazine chamada "Gambine" em que documenta a vida cultural em Campinas, SP. No Aquele Tuim integra a curadoria de música brasileira.

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