Clássicos do Aquele Tuim | Ambient 1: Music for Airports (1978)


★★★★☆
4/5

Nos anos anteriores ao lançamento de Ambient 1: Music for Airports, o compositor britânico Brian Eno já explorava as características musicais do que mais tarde viria a ser alcunhado de música ambiente. Seu álbum anterior a Ambient 1, Discreet Music (1975), é praticamente um simulacro do gênero ambiente: é minimalista em tudo que se pode ser, e mantém uma base hipnotizante ao ouvinte — nada se sobressai — e mesmo assim se percebe a totalidade com uma unidade sólida.

O nome Música Ambiente, que batizaria o gênero de Music for Airports em 1978, nasce em duas ocasiões distintas na vida de Eno: ao ser atropelado por um táxi, o compositor seria hospitalizado por algum tempo, e seus amigos, numa tentativa de tornar sua estadia mais suave, o presentearam com discos que tocavam durante toda a recuperação. Eno, contudo, não conseguia se movimentar livremente, e por isso o volume sonoro da vitrola continuava sempre o mesmo. Hora ou outra se mesclava a quietude dos álbuns com a chuva no lado externo do quarto. Nascia ali um background sonoro não-intencional, fato que inspirou o artista a explorar sonoridades semelhantes no futuro.

Noutra situação, ao ser feito esperar por um voo atrasado no aeroporto de Colônia, o músico percebe o ar desinteressado e sem inspiração do lobby onde estava sentado. Surge a ideia de um álbum conceitual feito com propósito de ser tocado em aeroportos, lobbies, elevadores — qualquer lugar em que a população seja feita aguardar por algo conseguinte. Nasce, advindo desses dois conceitos, Ambient 1: Music for Airports. Embalado por tons de piano e editado por meio da adulteração das fitas analógicas de gravação, o álbum é aparentemente uma obra-prima sem graça, um bege sonoro que perdura por 48 minutos — e é essa sua maior qualidade. Na avidez por criar um álbum completamente imperceptível aos ouvidos desatentos, Brian Eno começa um movimento cultural na música eletrônica e instiga nas artes a aplicação de um ditado antiquíssimo: deus e o diabo estão nos detalhes.

A filósofa americana Susan Sontag argumenta em seus ensaios, “Contra a Interpretação” e “Sobre o Estilo”, que analisar a arte sobre uma ótica maniqueísta de conteúdo x forma é, além de uma proposta falaciosa, reduzir a arte a suas partes mais primárias, já que toda arte deve ser vista como um fenômeno totalizante em si. Ambient 1 é melhor aproveitado quando o ouvinte percebe a obra como um todo, e não faz distinção sobre seu estilo, seu conteúdo e seu meio. É esse raciocínio, até então inédito no mainstream ocidental, que inspiraria uma miríade de álbuns futuros que bebem da fonte do gênero ambiente, a exemplo de David Bowie, na sua trilogia berlinense, e principalmente em Low, o primeiro da trilogia e lançado em 1977. “1/1” tem transparente inspiração em álbuns do modernismo americano e no minimalismo de Philip Glass, com seu foco no piano solo e sua extensão que acentua seus silêncios e tempo. Com a voga novamente concedida a estes conceitos, álbuns pop da próxima década teriam um quê de concatenação, uma autorreflexão própria de Music for Airports.

Se desde a Belle Époque o conceito de “música de fundo” já existia, aqui ele é ironicamente maximizado, estendido ao limite em suas quatro faixas, que em tandem, não são nomeadas. O nome atribuído a elas vem de sua ordem de aparecimento nos dois lados do LP. “1/2”: primeira faixa, segundo lado, e assim por diante. Numa sinfonia de sintetizadores, piano e vocais, nada sobra para a imaginação, tudo é apresentado exatamente do jeito que seu criador previu, e o espaço de silêncio que a vida nos apresenta no começo, durante, e após o final do disco devem ser completos não com mais sons ou música, mas com a intenção de seus ouvintes. Se “2/1” está tocando no banho, num aeroporto, num bar ou num quarto vazio, pouco importa. Se a intenção de quem ouve — ou deixa de ouvir — é única entre cada uma dessas situações, então Ambient 1: Music for Airports também se torna um álbum completamente diferente, seguindo cada uma das intenções que previa o primeiro play, a primeira agulhada no vinil.

No total, o silêncio e som são igualmente importantes e valorizados, como uma moldura fina ao redor de uma pintura de Modigliani, ou a falta de moldura em um Rothko. Se o som se mostra como o foco para o ouvinte, então a moldura está lá para lembrar da limitação do som, para cercar e rimar com ele, e nesse processo acentuá-lo. Se as pausas são o foco, então, como um Rothko, o silêncio vem como a falta, a pausa, a explicação de que a linha entre a arte e o real é muito tênue, quiçá invisível, e que sua influência não acaba — e nem pode acabar — nas linhas de uma tela, ou nesse caso, nas ondas mecânicas do som. “2/1” trabalha maravilhosamente com isso, sendo a faixa mais curta do álbum, e deixando pungente a falta, a rapidez, a urgência de seu tempo diminuto.

Tudo conspira para que o disco passe imperceptível, mas a força de sua proposta traz à tona justamente o contrário: é talvez na invisibilidade que Ambient 1: Music for Airports tenha sua maior força, sua maior influência. Percebê-lo enriquece seus desígnios, mas não perceber o materializa e torna fruto aquilo que vem da raiz do seu criador, tal qual o som de fundo que a chuva provém num hospital, o ciclo rítmico de um motor, a ausência de foco que por vezes nos acomete.

É nesse estado mutável, no torpor de significado que está ao mesmo tempo, latente e a mostra em todas as visitas ao disco, que brilha o ambiente descrito em música ambiente. Se o foco está no ao redor, na situação em que o álbum está tocando, então é como se magicamente virássemos uma chave mental: a enfatização em ambiente nos faz sentir nossas redondezas, e sentir nossas redondezas nos lembra da razão de o nome do álbum ser Ambient 1. É um ciclo que se perpetua até o fim dos 48 minutos de execução. É nisso que Brian Eno crê, nas dualidades de cada situação, nas nuances em algo tão simples quanto se sentar e esperar por um avião atrasado. Talvez, após o embarque você se pegue pensando em como a espera não foi tão ruim assim, e é esse pensamento que Eno quer estimular em você. Bom voo.

Selo: EG, Polydor
Formato: LP
Gênero: Ambiente
Pedro Piazza

Pedro, 21 anos. Cursa psicologia e tem uma quedinha pelas abordagens mais abstratas. Ama todos os tipos de arte e em especial a música, que guarda um lugar essencial em sua vida, principalmente as mais barulhentas. Parte da curadoria de MPB e hip-hop no Aquele Tuim

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