Crítica | Vou Ficar Neste Quadrado


★★★★☆
4/5

Há tempos que gêneros e elementos consagrados da música portuguesa, como o fado e a canção de intervenção, deixaram de ser delimitados e imiscíveis, com caráter quase “intocável”. Isso porque gerações contemporâneas de artistas, como Madredeus, grupo que surgiu ao fim dos anos 1980 e ganhou notoriedade internacional, abriram espaço para que elementos tradicionais lusófonos pudessem ser ressignificados e mesclados, sem, no entanto, nunca serem deixados de lado. Partindo deste olhar, em seu álbum de estreia, denominado Vou Ficar Neste Quadrado (2024), Ana Lua Caiano, cantora, compositora e multi-instrumentista, é uma das vozes que ditam quais são os pontos-chave da nova música portuguesa: tradicionalismo e contemporaneidade.

Após dois EPs bem-sucedidos e aclamados pela crítica musical, Cheguei Tarde A Ontem (2022) e Se Dançar É Só Depois (2023), Ana continua apostando em sua fórmula anterior na criação do primeiro álbum, com canções que, segundo a artista, foram escritas quase todas no mesmo período, em 2020. Deste modo, elementos típicos portugueses, como sobreposição de vozes (remetendo ao cante alentejano), harmonias, menções ao mar e letras relacionadas a temas cotidianos e folclóricos, são encontrados em todas as faixas do álbum, sempre ganhando uma sonoridade nova, experimental e eletrônica, com a presença de sintetizadores, loops e até mesmo sons de objetos utilizados como instrumentos.

A pandemia de COVID-19 trouxe mudanças profundas na vida da população mundial, e Ana Lua Caiano, ao ter pausado sua rotina agitada, pôde se dedicar ao lançamento de sua carreira artística e às composições do álbum, que ganharam temáticas relacionadas ao período. Assuntos como medo, cansaço, luto, tensão e repetição do cotidiano ganham destaque nas composições das 11 faixas (a 12ª é uma versão ao vivo de “Deixem o Morto Morrer”), ao passo que se misturam com menções à natureza, às formas geométricas e aos elementos do dia a dia, mostrando o olhar sensível e apurado da compositora de 24 anos.

Mesmo que lançado quatro anos depois da pandemia e várias décadas após o surgimento da música tradicional portuguesa, Vou Ficar Neste Quadrado é capaz de instigar a curiosidade daqueles que não tiveram contato com os gêneros lusófonos, agradar os ouvidos dos acostumados aos gêneros portugueses convencionais, gerar identificação por meio de temas e sentimentos atemporais e se unir a tantas outras obras musicais inovadoras que visam a manter memórias passadas vivas enquanto celebram e dão espaço para o que é novo e transformador.

Selo: Glitterbeat
Formato: LP
Gênero: Experimental / Folk, Eletrônica
Raquel Nascimento

De um lado, é profissional do texto há 8 anos, atuando como revisora, redatora, tradutora e escritora. De outro, é cantora e baterista, apaixonada por música de todos os gêneros. Unindo essas duas vertentes, escreve para o Aquele Tuim, fazendo parte da curadoria de Rock.

Postagem Anterior Próxima Postagem