
★★★☆☆
3/5
Em Mirante, nono álbum do compositor canadense Nick Storring, a relação entre experimentação sonora e memória transcende fronteiras geográficas, transformando-se em um exercício de escuta ativa. Distanciando-se de Humbucker (2025) — trabalho anterior que priorizava captações acústicas sem mediação sintética —, Storring aqui lapida sua obsessão pelo orgânico, agora filtrada por uma imersão sensorial no Brasil. O álbum não é um documento etnográfico, mas um diário de viagem sonoro, cujos instrumentos tradicionais e gravações de campo são deslocados de seus contextos para compor uma narrativa abstrata.
A escolha por instrumentos como cavaquinho, cuíca e pandeiro poderia soar como um gesto óbvio, mas Storring os subverte com maestria. Em vez de replicar gêneros brasileiros, ele os desmonta em átomos sonoros: o cavaquinho perde sua ginga característica para ganhar dissonâncias cortantes; a cuíca abandona seu papel no samba e vira um suspiro atmosférico; o pandeiro, fragmentado em padrões irregulares, transforma-se em um motor de percussão caótico. Essa desconstrução não é um acidente, mas uma estratégia — Storring usa esses elementos como pontes para criar texturas que oscilam entre o reconhecível e o enigmático. As gravações de campo, coletadas em São Paulo e Curitiba, seguem a mesma lógica: o burburinho urbano e os sons da natureza não ilustram cenários, mas operam como fantasmas acústicos.
A estrutura do álbum, marcada por faixas longas e repetições que se desdobram em microtexturas, revela uma fascinação pelo processo de desgaste sonoro. As repetições não são estáticas; elas acumulam camadas, como sedimentos, até que um simples motivo rítmico se transforme em um ecossistema complexo. Em Humbucker, Storring buscava a pureza dos sons acústicos e orgânicos; aqui, ele abraça a saturação controlada, em que múltiplas camadas coexistem sem hierarquia. A percussão, elemento central, não dita rumos, mas pulsa como um organismo vivo, tensionando a fronteira entre ordem e caos. Essa abordagem pode, em momentos, confundir-se com falta de direção, mas é justamente nessa ambiguidade que o álbum encontra sua força: como um espelho da própria experiência de descoberta, Mirante aceita o risco de se perder para encontrar novos caminhos.
A conexão com o Brasil, como o próprio Storring admite, é mais afetiva do que literal. Duas faixas foram compostas antes de sua primeira visita ao país, e o projeto ganhou forma após um mergulho nas nuances cotidianas da cultura local. No entanto, o álbum não se propõe a decifrar o Brasil, e sim a traduzir impressões — a luz, os contrastes, a densidade das cidades — em uma linguagem sonora que evita o pitoresco. O título Mirante é uma metáfora precisa: Storring observa de um ponto elevado, consciente de que sua perspectiva é limitada, mas transforma essa limitação em virtude. Ao invés de apropriar-se de símbolos, ele os reinventa, criando um diálogo entre o externo (o país visitado) e o interno (sua subjetividade de "meio-gringo").
Mirante é um álbum que se move entre fissuras — entre o concreto e o abstrato, o caos e a pulsação, a observação e a invenção. Se há uma fragilidade em sua recusa a engajar-se profundamente com as raízes culturais que evoca, há também uma integridade rara: Storring não finge familiaridade onde não a tem. Em vez disso, oferece um retrato honesto de um encontro cultural mediado pela música experimental, onde o Brasil não é um destino, mas um ponto de partida para uma jornada introspectiva. Mais do que uma homenagem, o álbum é um convite a ouvir o mundo através de lentes desfocadas — onde a beleza reside justamente no que não se revela por completo.
Selo: We Are Busy Bodies
Formato: LP
Gênero: Experimental / Ambiente