Crítica | Sincerely,


★★☆☆☆
2/5

Kali Uchis parece ter criado, em Sincerely,, um álbum que funciona como um espelho embaçado: reflete uma imagem reconhecível de sua arte, mas sem a nitidez necessária para revelar novas camadas. A escolha por um R&B melancólico e soul, já consolidado em sua carreira, não é o cerne do problema — a questão reside na forma como essa estética é executada, transformando-se em um ciclo de gestos seguros que evitam rupturas, contrastes ou mesmo momentos de respiro. O álbum é uma experiência sonora que se move em círculos, confundindo atmosfera com profundidade e coesão com monotonia.

A produção, caracterizada por camadas densas de reverberação e instrumentais difusos, cria uma paisagem sonora uniforme, mas à custa da individualidade das faixas. Enquanto projetos anteriores da artista exploravam a fusão de gêneros para tensionar narrativas, aqui a sonoridade se mantém em um registro único, quase claustrofóbico. A ausência de dinâmicas contrastantes — como transições entre silêncio e clímax, ou entre instrumentais minimalistas e arranjos exuberantes — nivela todas as emoções em um mesmo tom pastel. O resultado é um álbum que carece de textura emocional: a melancolia não dói, a serenidade não acalma, o amor não arde.

As letras, centradas em temas como amor incondicional, autodescoberta pós-maternidade e resistência à adversidade, são conceitualmente promissoras, mas executadas com superficialidade. A artista recorre a metáforas genéricas para abordar experiências que demandariam concretude. Ainda que haja versos que tentem romper com essa idealização (como reflexões sobre inseguranças ou relacionamentos desgastantes), eles são neutralizados por uma entrega vocal e instrumental que evita qualquer tipo de aspereza. A voz de Kali, embora tecnicamente sublime, soa como uma entidade dissociada das letras: ela canta sobre “perder o controle” com uma dicção tão controlada que nega a própria mensagem.

Essa dicotomia entre conteúdo e forma é o paradoxo central do álbum. Enquanto as letras celebram a vulnerabilidade e a imperfeição, a produção insiste em uma polidez estéril, como se a artista temesse manchar a pureza do conceito com ruídos ou riscos. Até mesmo os momentos que poderiam evocar conflito — como passagens que abordam traição ou desilusão — são entregues com uma suavidade instrumental que os reduz a meras abstrações. A escolha por evitar dissonâncias, batidas quebradas ou até mesmo variações de ritmo mais ousadas faz com que o álbum pareça asséptico, como se a música tivesse sido filtrada para apagar quaisquer vestígios de humanidade caótica.

Comparado a trabalhos anteriores, Sincerely, revela uma artista em modo de autoconservação, não de reinvenção. Kali Uchis já demonstrou, em álbuns como Isolation (2018) e ORQUÍDEAS (2024), que é capaz de equilibrar identidade sonora com ousadia — seja através de experimentações pop, fusões com reggaeton ou incursões em soul. Aqui, porém, ela opta por um conservadorismo estético que, embora coerente, soa como uma recusa a evoluir.

O álbum não é um fracasso — é competente em sua execução e ambicioso em sua pretensão de ser uma “carta íntima” —, mas é sintomático de uma fase criativa cautelosa. Kali Uchis parece mais interessada em preservar uma imagem, do que em desafiar-se artisticamente. Sincerely, funciona como um “moodboard” de emoções filtradas pelo Instagram: bonito, harmonioso, mas incapaz de transcender a superfície. Para uma artista que já provou ser capaz de mais, essa entrega segura não é um pecado, mas uma oportunidade perdida.

Selo: Capitol Records
Formato: LP
Gênero: R&B / Soul

Antonio Rivers

Me chamo Antonio Rivers, graduando em História, amazonense nascido em 2006. Faço parte do Aquele Tuim, nas curadorias de Experimental, Eletrônica, R&B e Soul.

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