
3/5
Em sua nova mixtape, human affliction: cataclysm!, kure mothri se propõe a uma tarefa quase cirúrgica: "cortar a carne da cegueira voluntária da humanidade", e o faz priorizando uma crueza sonora que recusa grandes intervenções estéticas. O resultado é uma aspereza que, mesmo ao lidar com elementos extremamente sintéticos, busca uma identidade "suja" e visceral, embora essa exploração corra o risco de perder o fôlego ao longo de suas ambiciosas vinte faixas.
Abandonando um som etéreo por uma imersão na eletrônic, shoegaze e industrial, kure constrói uma obra que se nega a ser estéril. As faixas, muitas vezes longas, desenvolvem-se em estruturas que parecem retilíneas, mas que ganham corpo e densidade progressivamente, com os sons estourados, repetitivos e cortantes funcionando como o bisturi que expõe os "aspectos mais crus da existência" mencionados pelo artista. Nessa atmosfera de dissecação, a voz distorcida, baixa e rouca funciona como a linha que costura as incisões, um fio condutor que unifica as diferentes partes do corpo sonoro que ele investiga, validando o propósito conceitual na maior parte do tempo.
Contudo, a própria extensão do projeto, fruto de dois anos de trabalho, abre espaço para uma inevitável diluição. A coesão da estética áspera é desafiada em momentos específicos, como em "settling down", que se desvia para um território que soa como uma versão endiabrada de country, ou em "you will not have what you want", que parece ser excessivamente limpa para integrar um corpo tão orgânico e imperfeito. A repetição em "my agenda" pode até lembrar o som de Cocteau Twins, mas carece das camadas e da preciosidade da banda, enquanto "satans hooves", que pelo nome promete ser um ápice do conceito, revela-se, estruturalmente, como todas as outras, levantando a dúvida se o poderoso conceito central teria força para preencher todo o álbum sem fissuras.
Ainda assim, se human affliction: cataclysm! fosse uma trilha sonora, pertenceria a um filme de estética retro cyberpunk que não teme exibir as impurezas e fraturas da modernidade. Mesmo nos momentos em que o conceito parece se fragilizar e quebrar, o trabalho consegue se sustentar na sua totalidade, um artefato sonoro que, em sua maior parte, cumpre a incômoda promessa de confrontar o ouvinte com aquilo que foi arquitetado para permanecer invisível.
Selo: Independente
Formato: Mixtape
Gênero: Experimental / Shoegaze, Noise