
★★★★☆
4/5
Há certas coisas que nós, que consumimos música observando movimentos, escolas e manifestações não-hegemônicas, deveríamos nos atentar mais. O selo Príncipe é uma delas. Em sua mais nova compilação, Não Estragou Nada – composta por 37 faixas, de diferentes artistas, diferentes sons e diferentes perspectivas de criação eletrônica afastada do eixo ocidental –, está concentrado praticamente tudo que o selo produziu nos últimos anos. E, apesar de situado num contexto europeu, em Lisboa, o trabalho desenvolvido por seus artistas é totalmente livre dos artefatos formais atrelados ao modelo de produção dominante no eixo EUA-Europa. Primeiro, pela fusão de ritmos angolanos, como a kizomba e o kuduro, para criar uma prensagem estética e de linguagem absolutamente singular. É daí que surgem multiplicidades como a tarraxinha, a batida, num guarda-chuva de noções que só eles sabem orquestrar.
E ainda que funcione como um verdadeiro catálogo de todas essas mutações, programadas por nomes como Farucox, Nuno Beats, DJ Nigga Fox, DJ Narciso e dezenas de outros excelentes criadores e produtores, Não Estragou Nada é incrivelmente bem organizado. Pode (e deve) ser ouvido na ordem concebida, pois o som criado por eles é tão característico, tão próprio em sua formatação, que parece haver um elo entre cada microssegundo de beat: ora mais natural (“Khamba”, “Party na Jungle”, “Fodência The Scratch”, “Batimento”), apelando para percussões; ora mais digital (“Para de Espirrar”, “Samba no Pé”, “Camones”, “Beat 2”, “Na Casa da Mana”), utilizando elementos altamente processados de dub, dubstep, techno e outros estilos, nunca replicados, mas sim metamorfoseados.
É como se fosse devorada a tradição desses estilos, que também contêm raízes negras. Não há facilidade no uso de alta tensão desses sons, é por isso que Não Estragou Nada também por vezes diminui a velocidade, expondo um lado mais calmo e contemplativo desses mesmos ritmos. É o caso de faixas como “Madstell”, que percorre seus cinco minutos numa lentidão dispersa em tons agudos blocados por um toque de fundo analógico, ou então a sequência “Sem Ti”, que assim como “Tears”, “Melodic Vibration” e “Micasibi” expõe um certo romantismo, menos platônico, mas ainda assim amoroso, atento aos detalhes. Nestas músicas, usa-se o próprio tom, o timbre instrumental, como se fossem as vozes, os suspiros, os cantos carregados de paixão.
É uma noção de humanidade que atravessa o que não é dito, ou apenas criado de maneira sintética. Por isso que nas mais de duas horas de duração percorremos uma trilha que une não só a inovação de artistas imersos numa realidade criativa destoante, que caminha ora a passos coletivos, ora individuais, mas nunca excludentes no que se refere ao ato de fazer música. Há, sobretudo, a ancestralidade, o aceno ao passado vindo de um presente que não se cansa de olhar, perscrutador, para o futuro. É daqui que surge uma das vanguardas mais interessantes do planeta, e Não Estragou Nada funciona bem por ser um disco-manifesto que vem para reafirmar o trabalho desses artistas, colocá-los frente a tudo. Parece muito, mas ainda é pouco para quem quiser conhecê-los, e assim absorver a grandeza do que representam.
Selo: Príncipe
Formato: Compilação
Gênero: Eletrônica