Crítica | LIL FANTASY vol.1


★★★★☆
4/5

CHAEYOUNG sempre teve uma personalidade à parte em comparação às outras integrantes do TWICE. Seu estilo um tanto excêntrico, marcado por visuais alternativos que destoavam do restante do grupo, postagens com desenhos que poderiam facilmente ser confundidos com a arte de uma criança de cinco anos e, sobretudo, um gosto musical peculiar sempre inclinado ao cenário alternativo e underground – com a exceção de sua paixão por Justin Bieber, afinal todos temos nossa cota básica no last.fm –, a destacavam. Nos últimos dois anos, ela foi consolidando uma identidade visual própria bastante instigante, algo que, felizmente, também parece refletir em sua arte como artista solo. LIL FANTASY vol.1 é a materialização musical desse universo estranho e misterioso que molda a personalidade da cantora, resultando em um dos discos mais singulares lançados no mainstream do k-pop nesta década.

Não é exagero dizer que esse disco é um dos projetos mais sui-generis que o pop coreano já teve. CHAEYOUNG aqui se inspira profundamente no cenário do bedroom pop, sua natureza lo-fi e intimista. E, para isso, colabora com artistas da cena indie do leste asiático, principalmente o grupo gliiico, trio japonês de indie rock e indie pop que traz uma forte sensibilidade psicodélica em sua música. O bom senso de gosto musical da integrante do TWICE junto ao trabalho em conjunto com artistas mais experientes da cena é essencial para que a incursão ao espaço do alternativo seja tão forte aqui. É por isso que LIL FANTASY vol.1 se destaca sobre qualquer obra que tenha sido lançada no k-pop recentemente – nenhum artista mainstream coreano se aventurou de maneira tão intensa com tendências do underground.

As faixas, em um panorama geral, se apresentam como canções de indie pop envoltas por uma atmosfera nebulosa, construída a partir de elementos lo-fi que criam uma ambientação hipnótica. O trabalho de gliiico deve ser compreendido como uma influência fundamental nesse sentido, especialmente pelo estilo de abordagem característico em seus projetos. “DOWNPOUR”, a música mais intrigante do registro, mergulha em efeitos que evocam a psicodelia, sustentada por uma produção baseada na repetição de um loop transformado por filtros intensos e reverbs, resultando em uma sensação quase alucinógena. Trata-se de uma fusão entre indie pop e nuances psicodélicas que remete diretamente ao que o trio costuma explorar em seus próprios trabalhos. É o ponto mais fora da curva do álbum, enquanto outras músicas, como “AVOCADO”, “BAND-AID” e “GIRL”, preservam o tom misterioso de suas instrumentações – graças aos grooves lentos e à gravação low-fidelity – mas assumem uma execução mais próxima das convenções do bedroom pop.

Há momentos pontuais que escapam desse espectro para explorar outras vertentes da cena underground. “SHOOT (Firecracker)”, por exemplo – ainda a faixa mais acessível aos charts coreanos e, não por acaso, escolhida como single –, adota uma ótica do synth funk mais próxima da abordagem de artistas indie. Mantém, assim, o trabalho com atmosferas nebulosas e levemente lo-fi, que incorporam à faixa uma forte carga nostálgica: um resgate oitentista capaz de evocar lembranças de um passado distante e enevoado, justamente pelo estilo de produção empregado. Trata-se de uma técnica que dialoga diretamente com propostas do eletrônico underground, como o chillwave e o hypnagogic pop. Já “Ribbons” e “그림자 놀이” se inclinam ao R&B alternativo, a primeira em uma fusão com o hip hop, trazendo traços de cloud rap em sua abordagem com sintetizadores etéreos e uso intenso de reverb; a segunda parte de uma instrumentação próxima ao trap, mas logo transita para um drum n’ bass pulsante.

Em um momento em que o k-pop atravessa uma forte crise criativa, marcada por lançamentos cada vez mais genéricos e pela simples reprodução de tendências – muitas vezes sem o aprofundamento que antes sustentava a indústria, apenas para adaptá-las ao mercado coreano –, CHAEYOUNG surge como uma luz em meio à escuridão, trazendo uma visão musical inventiva e contra a maré. Sua leitura dos elementos do bedroom pop é notável: ela os utiliza para criar um ambiente próprio. Ao ouvir o disco, é possível traçar paralelos com diversos artistas da cena alternativa/indie, tanto nomes ocidentais, como The Marías e Men I Trust, quanto artistas undergrounds do leste asiático, como o próprio grupo gliiico, que participa ativamente do processo criativo de LIL FANTASY vol.1. Ainda assim, não há nada semelhante no mainstream do k-pop, o que torna este o projeto mais singular lançado na cena nesta década.

Selo: JYP Entertainment
Formato: LP
Gênero: Música do Leste e Sudeste Asiático / K-Pop, Bedroom Pop

Davi Bittencourt

Davi Bittencourt, nascido na capital do Rio de Janeiro em 2006, estudante de direito, contribuo como redator para os sites Aquele Tuim e SoundX. No Aquele Tuim, faço parte das curadorias de Música do Leste e Sudeste Asiático, Pop e R&B.

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