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Foto por Eduardo Rivera |
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Antes de qualquer comentário sobre o show da Lady Gaga no Brasil, é preciso começar pela sexta-feira — mais especificamente, pelo ensaio. Eram 15h quando começaram a circular informações sobre uma possível passagem de som entre 19h30 e 20h. Sem muita certeza do que viria, fui direto para as areias de Copacabana, movido apenas pela expectativa. Enquanto conversava distraidamente com outras pessoas que também estavam ali à espera de algo, um estrondo vindo do palco nos tirou da conversa: era ela. Sorridente, surgindo sob a introdução de “How Bad Do U Want Me”, Gaga apareceu como quem já sabia o impacto que estava prestes a causar. Curiosamente, essa música nunca havia me tocado de verdade quando ouvi pela primeira vez no lançamento do álbum, mas naquele momento, sob aquele céu, tudo mudou. O que deveria ser somente uma checagem de som se estendeu por inúmeras músicas e, sem exagero, deixou a sensação em todos ao redor de que aquela noite tinha mudado alguma coisa dentro da gente.
Já no sábado, o show oficial começou às 22h10, com atrasos. Muito se comentou sobre a possibilidade de um acréscimo de tempo – havia rumores de que o contrato previa mais quarenta minutos de apresentação —, mas isso acabou não se confirmando. Ainda assim, isso não chegou a ser um problema. Apesar da ausência de faixas do Chromatica, do Joanne e do tão pedido ARTPOP, o público não demonstrou qualquer frustração. Nem as pausas mais longas entre músicas, provavelmente pensadas para dar respiro à artista, conseguiram diminuir a vibração que estava claramente presente em Copacabana. É que, mesmo diante de um setlist sem surpresas, a conexão estava formada: mais de dois milhões de pessoas pulando, gritando, dançando e se emocionando juntas.
Parte dessa entrega tem a ver com o lado ousado de Gaga que se permitiu escolher esse momento para apresentar MAYHEM. Para quem esperava hits já conhecidos ou uma coletânea dos seus maiores sucessos, essa decisão pode ter parecido arriscada — levando em consideração a apresentação de Madonna no mesmo lugar no ano anterior.
No primeiro ato, Gaga surgiu em um vestido vermelho vibrante, em cima de uma estrutura elevada, enquanto violoncelos e vocais intensos preenchiam o espaço com um clima denso. A escolha de abrir com “Bloody Mary” fez tudo soar como ritual. E não por acaso: a música, que já carrega esse aspecto místico, ganhou contornos quase sagrados diante daquela multidão. Na sequência, “Abracadabra” transformou aquele lugar completamente. Com a adição da palavra “Copacabana” à letra, Gaga reescreveu a música em tempo real, e as luzes — pulsando em sincronia com os instrumentos — cobriam toda a praia como uma onda de energia. Era impossível não se sentir parte daquilo. Ao fim da canção, ela reapareceu com um vestido verde e uma faixa azul, fazendo uma homenagem ao Brasil de forma silenciosa, porém direta.
Logo depois, “Judas” entrou sem pausa. A coreografia e a entrega mostravam que, mesmo depois de um início tão carregado de emoção, ninguém estava disposto a perder o fôlego. Em “Scheiße”, Gaga subiu na estrutura para cantar de cima, como se comandasse o caos de cima do mundo. O que se seguiu foi “Garden Of Eden”, marcada por um coral caótico que preencheu o espaço com uma teor espiritual inesperado, como se fosse uma pausa para o sagrado em meio ao furacão — mas que no fim não era nada disso. Depois, pegando uma guitarra, Gaga mostrou que o controle criativo era todo dela. Ao fim desse bloco, falou pela primeira vez com o público: “Brasil, eu senti saudades. Vocês estão prontos para esta noite?”. A resposta foi uma explosão de gritos eufóricos. E talvez o momento mais visualmente poderoso tenha vindo logo depois, com “Poker Face”. Nesse número, Gaga duelava com ela mesma sobre um tabuleiro de xadrez, numa representação clara de confronto interno. Em meio ao embate, veio a pergunta: “o que você está fazendo aqui?”. Foi o choque entre o passado e o presente.
Se os atos anteriores mergulharam em introspecção, reinvenção e afeto, o terceiro veio para romper qualquer barreira que restasse entre Gaga e o delírio coletivo. Com o título The Beautiful Nightmare That Knows Her Name, essa parte do show foi a materialização do caos sensual e da força feminina levada ao seu limite. Era como se, a esta altura, Gaga já não estivesse apenas performando para o público — ela estava incorporando algo maior, um arquétipo de poder, fúria e beleza distorcida.
Tudo começou com um solo de bateria que foi aumentando de intensidade até se tornar quase ensurdecedor. Era o anúncio de “Killah”, uma das performances mais viscerais da noite. Ali, Gaga surgiu incorporando uma persona erotizada e violenta, numa encenação que misturava domínio e desejo. Ao mesmo tempo em que parecia provocar, ela também impunha medo. Nada ali era gratuito: os gestos eram afiados, os olhares calculados, e cada movimento afirmava o controle absoluto da situação. O palco virou território dela — e apenas dela. A intensidade do número, combinada com o cenário pulsante, fez dessa uma das passagens mais eufóricas de toda a apresentação.
Em seguida, com “Zombieboy”, o clima se manteve sombrio, porém com outro tipo de teatralidade. Agora vestida com uma roupa amarela com detalhes azuis, Gaga dançava entre esqueletos ao lado de seus dançarinos, em uma coreografia que mais parecia uma dança dos mortos. Apesar da esquisitice proposital, havia ali uma leveza diferente, como se o grotesco já não fosse mais um peso, mas parte da celebração.
Logo depois, veio “Die With a Smile”, que, apesar do título melancólico, se espalhou pela praia como uma canção de amor compartilhado. Era uma música que muita gente já vinha cantando desde o início da noite, e quando começou, parecia que todo o público já sabia o que estava por vir. Sem perder o ritmo, ela emendou com “How Bad Do U Want Me”, que, mesmo sendo uma faixa menor da discografia, ganhou uma força inesperada ali, naquele cenário à beira-mar. E o que chamava a atenção não era apenas a escolha das músicas, mas o modo como Gaga parecia, de fato, estar se divertindo. Era visível que ela queria estar ali — e esse prazer genuíno fazia tudo pulsar mais forte.
Mas nada superou a catarse que veio com “Born This Way”. Assim que os primeiros acordes começaram, não havia mais chão. Gaga, do centro do palco, gritou: “Brasil, esse é o momento, coloquem as mãos para o alto!” — e foi impossível não obedecer. As explosões de luzes e fogos que se seguiram transformaram Copacabana num verdadeiro campo de celebração. Foi um abraço coletivo, quase maternal. No fim da canção, ela foi ao piano, cercada por seus dançarinos, e fez a transição para “Blade of Grass” e depois “Shallow”. Durante “Shallow”, o público inteiro ergueu os celulares, e o mar de luzes nas areias criou uma cena que não parecia real. Gaga, visivelmente emocionada, mal conseguia conter as lágrimas. Tudo ali era soava mágico — e ninguém queria que acabasse.
Mas ainda havia espaço para mais um gesto simbólico. Em “Vanish Into You”, Gaga desceu para o público, carregando a bandeira LGBTQIAPN+. A multidão a recebeu, e ela dançou com fãs da grade, ganhou rosas pretas, distribuiu sorrisos e olhares que diziam mais que qualquer palavra. Era uma artista em estado bruto de afeto. Radiante, inteira, presente. Se em outros shows há distância entre ídolo e plateia, aqui a divisão havia desaparecido. Gaga era uma de nós — e, naquele momento, éramos todos dela.