
4/5
Imagine que seu amigo mais próximo, de longa data, te apunhala pelas costas e você não sabe muito bem como reagir. Bom, a Little Simz fez um álbum. É inegável que Lótus nasceu das frustrações de Simbi em relação ao seu ex-produtor, Inflo, já que boa parte das faixas parece tratar do processo que envolveu ambos. No entanto, Simz jamais se prenderia à superficialidade de uma mera “intriga” envolvendo 1,7 milhão de libras, e é justamente aí que reside o verdadeiro sentido do álbum. Conhecemos os questionamentos que a rapper britânica faz sobre sua própria vida, suas relações, ancestralidade e, acima de tudo, sua fé. Não apenas a fé religiosa, mas a fé em si mesma.
De forma inteligente, Simz constrói uma série de ponderações e buscas por paz de espírito, dando sentido ao nome do projeto. A faixa de abertura, “Thief”, expõe toda a raiva e ressentimento que Simbi sente em relação à traição de alguém em quem confiava profundamente. A rapper não usa a palavra “ladrão” apenas no sentido literal, mas como metáfora para alguém que roubou sua confiança. Ela narra a decepção de perceber que alguém tão próximo agia pelas sombras, “vendendo mentiras e sonhos”, apenas para deixá-la na mão. Na faixa, ela questiona: “Eu sento e penso: ‘O que eu fiz?’ Mas é isso que os abusadores fazem. Fazem você pensar que está louco e duvidar de cada movimento seu.”, carregando uma atmosfera sombria, soando quase como um terror psicológico, talvez o mesmo que ela tenha vivido.
“Thief” não é a única faixa em que Simbi revela suas frustrações. Em “Flood”, ela expressa sua desconfiança constante e medidas que precisou adotar para se proteger de interesses alheios. A tensão cresce com o uso percussivo intenso, acompanhando as rimas firmes. O clipe obscuro da faixa mostra Simbi enfrentando seus próprios demônios, enquanto a chuva cai de forma constante. Vemos líderes religiosos, figuras fúnebres e cenas que remetem a um exorcismo.
Da raiva à introspecção, Simz avança para um estágio espiritual em “Free”, uma das faixas de destaque do álbum. Em meio à desconfiança, traição e crises de autoestima, ela reflete sobre como o amor — não apenas o romântico — pode libertá-la. A canção é dividida em três partes: na primeira, de forma poética, fala sobre o significado do amor, citando o livro Tudo Sobre o Amor, de Bell Hooks; na segunda, aborda o medo como algo que paralisa, muitas vezes disfarçado de proteção; no fim, resgata a palavra “Free” para mostrar como a liberdade pode surgir em gestos, detalhes e conexões genuínas. A produção envolve baixo rítmico, bateria e instrumentos de corda etéreos, intensificando a profundidade da mensagem.
“Hollow” complementa a discussão sobre fé — ou a falta dela — nas pessoas próximas. Simz parece lamentar por quem é incapaz de compromisso ou autenticidade. Há um vazio nelas que ela não pode preencher. E aqui a mensagem ao produtor parece se tornar direta: “Sua vida não é sincera. Nenhuma música que você faz pode reparar o dano [...] Você me disse para ter cuidado com os tubarões e então você se tornou um.” Ela mostra que, para ele, nunca foi pela “pela cultura”, e sim “pelo culto”.
O álbum passa por diferentes fases dessa separação entre Inflo e Simz. Em “Lonely”, sentimos a dor de Simz ao perder alguém considerado da família. A crise foi tão intensa que ela não conseguia mais produzir, até entender que só conseguiria escrever se atravessasse essa mesma dor. Num período de introversão profunda, questionou até se a música ainda fazia sentido, se aquela garota de quem todos eram fãs ainda existia. No entanto, ela narra na faixa que foi buscar em suas próprias frustrações o combustível para criar. O instrumental cresce, sendo guiado por violoncelo, baixo, bateria e os vocais de Sampha. Há uma harmonia entre todos os elementos, e tudo o que podemos fazer é ouvir e absorver.
Se em “Backseat”, faixa de Stillness In Wonderland, Little Simz se incomodava por estar sempre no banco de trás da própria vida, em “Lótus”, 11ª faixa do álbum, ela mostra que, mesmo com as mãos no volante, ainda há muito a aprender e refletir. Com quase sete minutos, ela mistura rap, usando de rimas cruzadas, jazz e soul para aprofundar as questões internas que sempre moveram Simz. A comparação entre as faixas está na permanência da essência: a busca por evolução, por algo em que acreditar, por ser alguém melhor. Com a participação de Michael Kiwanuka no refrão — que traz equilíbrio e respiro entre os versos intensos —, ela fala: “Eles me dizem ‘Simbi, está em suas mãos’. Você está pregando para convertidos”, mostrando que essa consciência sempre esteve presente. Suas metáforas e construção lírica tocam, permitindo que qualquer um se identifique com esse sentimento de inquietude constante.
É fundamental mencionar o trabalho de Miles Clinton James na produção. Além dos elementos tradicionais do estilo, o disco mistura punk, jazz e até funk. Sua habilidade em criar paisagens sonoras que ambientam cada faixa dá coesão e profundidade ao projeto. A colaboração entre ele e Simz evidencia o potencial criativo de ambos, resultando em uma sinergia artística ímpar. A mistura de instrumentos tradicionais com elementos orquestrais cria uma atmosfera cinematográfica que acompanha toda a densidade emocional do álbum e a habilidade de Simz em rimar com autenticidade e de maneira fluida.
Há momentos mais fracos, como “Young” e “Enough”, que, embora não comprometam o conjunto, não atingem o mesmo nível de excelência das demais faixas por se tornarem sonoramente cansativas. No entanto, outras músicas que aparentam fugir do fio condutor do álbum acabam por complementá-lo. Se o objetivo é alcançar a paz espiritual, é preciso tocar todas as áreas da vida, como em “Blood”, onde Simbi aborda família e ancestralidade em um diálogo emocional com quem parece ser um irmão gêmeo, interpretado por Wretch 32, veterano do hip hop britânico.
Little Simz é hoje um dos nomes mais consistentes da cena britânica e mundial. Sua familiaridade com as palavras, sua visão artística e entrega emocional a colocam em um patamar singular. Reconhecida por ninguém menos que Kendrick Lamar, Simz sabe de seu valor, mas para ela, isso nunca foi só sobre reconhecimento. É sobre expressão. Sobre verdade. E Lótus é a mais pura prova disso. Um álbum coeso, profundo, liricamente brilhante e visualmente impactante.
Selo: AWAL Recordings
Formato: LP
Gênero: Hip Hop/ Rap, Soul e Jazz