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Foto por: Bruna Liz (@fotobruliz_) |
Para o Aquele Tuim, a DJ fala sobre união, política e futuro na cultura periférica.
Por: Matheus José e NaPauta
DJ Dayeh é um dos nomes mais importantes do funk. Seria exagero dizer isso se ela, de fato, não estivesse envolvida em projetos que têm transformado a cena, produzindo e tecendo relações que vão além do som, propagando ideias e postulados criativos que dizem tudo sobre ela, sua passagem pelo gênero e suas disputas que interseccionam a realidade feminina na vanguarda e as relações tecidas a partir disso.
Dayeh lançou recentemente seu primeiro álbum, Relíkias da Kond, um disco que mistura passado e presente do funk. Reimagina clássicos da produtora KondZilla ao passo que apresenta-os para a nova geração. É legítimo, mas só faz sentido com Dayeh, principalmente pelo contexto em que foi lançado.
O começo
Aos 26 anos, Gabriela Dayeh não esconde que sua relação com a música começou por sobrevivência. Pós-graduada em Ciências Sociais, ela se descobriu DJ em 2018, no meio de uma crise profunda.
A escolha foi natural. Filha de pai pixador e de uma família envolvida com o rap, Dayeh cresceu cercada por funk e hip hop. “Eu sempre gostei muito de música, eu gostei muito de rap, de funk desde sempre”. E assim a resposta veio de perto: o bairro oferecia um curso gratuito de discotecagem em toca-discos. Dayeh, que sempre foi apaixonada por esse universo, se jogou. Vinda de uma família com raízes na cultura de rua, cresceu entre referências como KL Jay. “Apesar de eu sempre ter sido muito funkeira desde sempre, tinha essa tendência muito forte do rap em casa.”
Foi nas aulas com o DJ Erryg que ela teve o primeiro contato com os toca-discos e com a cultura das batalhas de DJ. Erryg, veterano da cena, abriu as portas para um universo que, até então, Dayeh só admirava de longe.
“Ele era DJ de batalha, então era outro babado, entendeu? Era outra brisa, era o bagulho tipo a performance e pum. Achei muito incrível essa parte, em específico. ‘Caralho, isso é muito foda, eu quero muito fazer isso.’”
O curso acabou, mas a vontade de continuar era maior. Dayeh procurou o professor e pediu aulas particulares. Erryg, prestes a se mudar para Portugal, topou: nascia ali um intensivão, duas vezes por semana, no extremo sul de São Paulo.
“Eu fui a última aluna dele aqui antes dele ir pra Europa, né. Cê é louco, eu chegava lá e ele ficava uma hora conversando comigo antes da gente mexer nos equipamentos. Sobre o que é ser DJ, quais as responsabilidades de um DJ, o que é o ofício de um DJ... E toda essa parte do compromisso e do respeito que o hip hop tem, né? Esse rolê.”
Depois de se despedir do seu primeiro professor Dayeh não se deu por satisfeita, foi aí que se tornou aluna do DJ B8, esse sim, mas consolidado com o estilo voltada ao público “Com ele eu já cheguei sabendo o básico, mas foi ele que me ensinou sobre sentir a pista, a como lidar com contratante, como estruturar um set”.
O primeiro set de Dayeh veio apenas depois de 6 meses só estudando e foi, naturalmente, de rap. Começou tocando em eventos pequenos, ligados à cultura de rua, como encontros de pixadores, campeonatos de skate e festas nas periferias de São Paulo. Um dos momentos marcantes desse início foi quando se apresentou no Arte e Cultura na Kebrada: “Eu comecei a tocar em campeonato de skate, em evento na quebrada... eu cheguei a tocar até no Arte e Cultura na Kebrada. Então tipo assim fui galgando ali, entendeu? Onde dava.”
Mas aí veio a pandemia. E com ela, o silêncio dos bailes. Dayeh ficou quase dois anos sem tocar, e se recusou a participar de eventos clandestinos. Foi nesse período que, trancada em casa, começou a gravar vídeos no Instagram, com sets rápidos, misturando trap, funk antigo e viradas que mostravam, de certa forma, que ela era capaz de tocar de tudo. Isso chamou atenção, não só dela.
“Comecei a fazer uns vídeos lá no meu quarto, tocando, fazendo várias viradas de trap, de funk antigo, de vários tipos de música, pra mostrar que tipo assim, sei tocar de tudo. Dez viradas em cinco minutinhos pompom tal tal tal tal... foi nessa época que eu vi, pela primeira vez, já vi muita gente me conheceu.”
Um desses vídeos chegou até um contratante de uma balada chamada AMATA . O convite surgiu de forma informal, quase como uma promessa entre amigos. “Ele me viu tocando e falou: ‘mano, quando você vai vir tocar com nóis?’ Eu falei: ‘quando tomar duas doses de vacina, fi!’ E aí não deu outra: no dia que eu postei a foto tomando a vacina, ele falou: ‘bora marcar a data, já tá ligado’.”
A volta às pistas, no entanto, trouxe um choque de realidade. O cenário do rap underground havia desaparecido. As festas menores tinham quebrado, e os poucos espaços que restaram pediam outra coisa.
“Na volta da pandemia já tinha o Mandela, e ninguém mais tocava boombap, tipo assim, não existe mais você contratar um DJ pra tocar boombap. Não tem mais rolê independente, underground, porque todo mundo faliu. Então tipo assim, ou toca trap, ou toca funk, ou você não toca, tá ligado?”
A escolha não foi fácil, mas foi clara. Dayeh nunca gostou de trap, disse isso sem rodeios. Já o funk, ela carregava desde sempre. “Eu prefiro migrar de vez pro funk do que ficar no hip hop fazendo um bagulho que eu não gosto, tá ligado? Porque o funk eu gosto, me identifico, sou funkeira desde sempre.”
Foi nessa virada, depois da pandemia, que ela abraçou o novo caminho com convicção. Passou a fechar festas só de funk e, durante um bom tempo, foi uma das poucas DJs tocando Mandela nas pistas. “Foi um período difícil do Mandela, esses primeiros dois anos depois da pandemia... basicamente eu, a Bonekinha Iraquiana, o Caio Prince e o Muzão éramos os únicos DJs que tocavam.”
O terreno da bruxaria
Se no começo o funk de pista com estética de quebrada já encontrava barreiras, quando Dayeh e seus parceiros começaram a tocar bruxaria – vertente mais barulhenta, ruidosa e cheia de aparatos estéticos que remetem ao horror no funk –, a recepção beirava o desprezo. “A gente [Dayeh, Bonekinha, Caio Prince e Mu540] éramos os únicos que tocavam Mandela nesse nicho de baladinha de playboy, tá ligado... tirando isso, Mandela tocava só na favela. E não é síndrome de pioneirismo nem nada assim, é só para dimensionar a treta que era tocar bruxaria nesses locais tá ligado? Porque tipo assim, ninguém tocava, o público não gostava, os contratantes não gostavam... todo mundo ficava: ‘meu, mas não tem como você tocar um funk mais conhecido? Não tem como você tocar aquele lá do TikTok?’”
A bruxaria ainda era vista como um “canal” estranho dentro da cena. Em festas como a AMATA, na Lions, no meio da Vila Madalena, ela e os colegas eram recebidos como esquisitos. Ainda hoje, ela diz, há resistência.
“Ficou todo mundo tipo: ‘que porra é essa?’ Até hoje tem lugar que a gente tem muita dificuldade de passar. Imagina nessa época, três anos, quatro anos atrás...”
Foi o Mu540 quem ajudou a mudar o jogo. Já consolidado, ele começou a tocar bruxaria e a legitimar o som. “O Muzão foi uma pessoa que ajudou muito a validar o que a gente fazia, sabe? Porque o Muzão já era o Muzão, já era estourado, já morava em São Paulo, tocava aqui... Aí tanto contratante quanto público olhava o Muzão tocando bruxaria e falava: ‘eu não gosto, mas ele tá tocando, tem um motivo, tá ligado?’”
Foi nessa época, em 2022, que Dayeh começou a produzir suas próprias músicas. No início, observava mais do que criava. Em 2023, no Carnaval, lançou o primeiro som feito inteiramente por ela. Depois disso, vieram os singles e então, o primeiro EP. “Foi meu primeiro EP. Eu convidei muita gente, são 25 pessoas... como foi o meu primeiro EP, eu acho que tipo... as pessoas entravam pra me ver ali, pra ver o meu Spotify, olhava... a gente tende a ir direto no projeto, né? E não ficar olhando: ‘a pessoa tem 200 singles’. E um projeto... você vai no projeto, tá ligado?”
Apesar de assinar toda a produção, sentia que o trabalho dizia mais da cena do que dela mesma. Foi aí que surgiu o desejo de criar algo totalmente autoral, em essência. “Eu queria fazer um bagulho que fosse eu, que fosse 100% eu.”
O remix, a nostalgia e uma nova Dayeh.
Apaixonada por remix desde o início, foi justamente essa estética que guiou sua entrada de vez na produção musical. A ideia era simples: fazer versões atualizadas das músicas que queria tocar, porque depender de outros produtores para isso a limitava artisticamente. “Sempre o meu babado foi remix. Eu comecei a produzir pra fazer remix, tá ligado? Pra pegar músicas que eu já gostava, que eu queria tocar na pista, mas que o beat tava desatualizado. [...] Eu ficava dependendo que outros DJs fizessem o remix que eu gostasse, pra eu poder baixar... Aí falei: ‘não, vou aprender a produzir e vou fazer’.”
Foi nesse percurso que a relação com a produtora KondZilla se consolidou. Ainda nos primeiros passos como beatmaker, ela teve acesso livre ao estúdio, com espaço para aprender, errar e testar.
A conexão com o funk de 2015, da sua adolescência, também reverbera em seu som. As referências de pista vêm da favela, mas com memória afetiva e visão de futuro e um desejo pessoal de reimaginar muitos desses sons que fizeram parte da sua trajetória, como funkeira.
“2015 eu tava no terceiro ano do colegial, gente. Foi o momento pra mim ali, de viver aquilo. Muito nostálgica. É a minha adolescência, de fato, é só na favela.”
Depois de estrear como produtora no EP colaborativo da Tropa do Bruxo, intitulado De Rolê na 011 Mixtape, Dayeh sentia que ainda não tinha entregue uma obra que fosse, de fato, sua cara. Queria ir além da coletividade: fazer um álbum inteiro sozinha, com controle criativo total e com todas as ferramentas que precisava para realizar uma antiga vontade: criar um projeto de remixes com a mesma energia dos sons que marcaram sua adolescência. Foi aí que surgiu o Relíkias da Kond.
“Como é o meu primeiro álbum, eu queria que fosse uma coisa 100% da minha cara. Eu quero produzir sozinha e eu quero ter autorização pra usar o beat da música, as vozes, e pra colocar a Bibi Drak pra fazer a resposta.”
A ideia de fazer “respostas” para músicas antigas era um desejo de Dayeh que permanecia com o passar dos anos. Antes mesmo de tocar em festas, ela e sua amiga Rebeca já sonhavam com isso, sentadas na porta da faculdade, vendo vídeos das minas que faziam versões femininas das letras.
“A gente criava as nossas paródias, e era tipo babado. Eu falava: ‘meu, eu preciso de uma mina que venha fazendo isso’… mas tem que ser alguém que viveu aquilo também, tá ligado?”
Foi por isso que a escolha da MC Bibi Drak foi certeira. Para Dayeh, não bastava ter flow; era preciso ter vivência, memória de baile, e a capacidade de traduzir aquela época numa voz feminina que fugisse do estereótipo hipersexualizado. “Uma coisa malokeira, menos erotizada, sabe? Tipo, a letra erotizada, mas a imagem não. Então acho que isso é muito legal.”
Para viabilizar o álbum, ela propôs o projeto à KondZilla, que topou, e mais, disponibilizou para ela o catálogo completo de fonogramas da produtora, com autorização para remixar o que quisesse. Mas havia uma limitação importante.
Com o catálogo em mãos, Dayeh fez uma curadoria que equilibrasse afetividade, contemporaneidade e pista. A seleção priorizou faixas que representassem bem a época em que foram lançadas, mas que também funcionassem hoje nos bailes: “Não dá pra trazer uma música do MC Fulano que hoje em dia já foi cancelado, ou que já não tem mais nada a ver. Não é o jeito que o cara rima hoje que pega na pista.”
O projeto, segundo ela, é feito para DJs. Ela mesma pensou em cada faixa como se fosse uma resposta àquela velha frustração: não encontrar remixes bons o suficiente para tocar. “Foi essa a meta: fazer um álbum que eu queria que algum DJ fizesse e me mandasse, tá ligado?”
Na seleção final, três das músicas escolhidas são do MC Dede, algo que aconteceu naturalmente, segundo Dayeh. Para ela, Dede é um artista que sempre equilibrou letras explícitas com lirismo e respeito.
Funk e a truculência do Estado
Outra faixa escolhida foi “Aonde Nós Chegou”. Dayeh acredita que é hora de ressignificar a música à luz do momento atual do funk, ou seja, mais denso, povoado por infinitos artistas e infinitas possibilidades de criação, mais urgente, mais político. Se no passado ela celebrava a chegada de um novo lugar social para os MCs, hoje ela evidencia o quanto essa conquista gerou respostas conservadoras e violentas do Estado.
O funk, nesse sentido, virou ativo estratégico. Subiu no palanque da política, da moda, da publicidade, mas foi retirado das ruas onde nasceu. O que Dayeh vê é um deslocamento violento: uma tentativa de mercantilizar algo que sempre foi linguagem popular, coletiva e marginal. “Não vai ter baile, não vai ter funk em evento da prefeitura... funk agora vai ser caro de consumir, porque dá dinheiro. Tem um projeto de Estado pra controlar, saca? Pra controlar o dinheiro que entra e que sai.”, diz ela.
A escolha de incluir essa faixa no álbum, portanto, é também um gesto de enfrentamento. De reafirmação. Ela quer que o público pare e pense. Que perceba que o funk, além de corpo e pista, é também história, disputa e memória coletiva de um passado que não é distante, e que é inviável e sem sentido ser deixado de lado.
A expansão do funk, os benefícios e os malefícios.
Ao mesmo tempo, enquanto o funk vira pauta global, seja com Kanye West ou Beyoncé usando beats em suas músicas, ou Rihanna trazendo o som para sua icônica apresentação no intervalo do Super Bowl, Dayeh sente que essa projeção vem deslocada de quem está realmente na linha de frente da criação. “Tem as gravadoras que estão privatizando e usando os beats, as acapellas, pra fazer fonte, uma coisa... que desvia o foco de quem realmente tá lá, fazendo.”
Mas, como tudo que se torna rentável, o funk foi apropriado. E ela não romantiza nem demoniza esse processo: “A indústria vai se apropriar. A partir do momento que o funk começa a ser rentável, ele começa a valer pra indústria. [...] Ele vira mercadoria.”
Ela evita entrar em polêmicas públicas, mas deixa claro que sua posição é crítica, sem ser ressentida. Deixando claro que esse processo tem ganhas e perdas. Lembra de um amigo estudioso que, ainda no início da bruxaria, reconheceu no som dela algo que se assemelhava ao funk mais experimental do passado, quando o gênero era puro ruído, tensão e invenção. “Ao invés de ficar lutando com o brazilian phonk, acho que a gente tem que lutar para dar o nome certo. [...] Os gringos podem nos contratar porque acham que a gente faz brazilian phonk, mas chegando lá, a gente vai falar que o nome é bruxaria, é Mandela... O mundo todo sabe pronunciar Mandela!”, exclama.
Dayeh lançou recentemente seu primeiro álbum, Relíkias da Kond, um disco que mistura passado e presente do funk. Reimagina clássicos da produtora KondZilla ao passo que apresenta-os para a nova geração. É legítimo, mas só faz sentido com Dayeh, principalmente pelo contexto em que foi lançado.
O começo
Aos 26 anos, Gabriela Dayeh não esconde que sua relação com a música começou por sobrevivência. Pós-graduada em Ciências Sociais, ela se descobriu DJ em 2018, no meio de uma crise profunda.
Eu tava num momento muito difícil, muito deprimida, muito, muito, muito, muito deprimida, assim, depressão severa. Trabalhava muito, fazia faculdade, uma faculdade muito difícil... E aí a minha terapeuta falou que mesmo eu tomando remédio, mesmo eu fazendo terapia, eu precisaria de alguma coisa, algum hobby, e que não tivesse nenhuma ligação nem com meu trabalho, nem com a minha faculdade.
A escolha foi natural. Filha de pai pixador e de uma família envolvida com o rap, Dayeh cresceu cercada por funk e hip hop. “Eu sempre gostei muito de música, eu gostei muito de rap, de funk desde sempre”. E assim a resposta veio de perto: o bairro oferecia um curso gratuito de discotecagem em toca-discos. Dayeh, que sempre foi apaixonada por esse universo, se jogou. Vinda de uma família com raízes na cultura de rua, cresceu entre referências como KL Jay. “Apesar de eu sempre ter sido muito funkeira desde sempre, tinha essa tendência muito forte do rap em casa.”
Foi nas aulas com o DJ Erryg que ela teve o primeiro contato com os toca-discos e com a cultura das batalhas de DJ. Erryg, veterano da cena, abriu as portas para um universo que, até então, Dayeh só admirava de longe.
“Ele era DJ de batalha, então era outro babado, entendeu? Era outra brisa, era o bagulho tipo a performance e pum. Achei muito incrível essa parte, em específico. ‘Caralho, isso é muito foda, eu quero muito fazer isso.’”
O curso acabou, mas a vontade de continuar era maior. Dayeh procurou o professor e pediu aulas particulares. Erryg, prestes a se mudar para Portugal, topou: nascia ali um intensivão, duas vezes por semana, no extremo sul de São Paulo.
“Eu fui a última aluna dele aqui antes dele ir pra Europa, né. Cê é louco, eu chegava lá e ele ficava uma hora conversando comigo antes da gente mexer nos equipamentos. Sobre o que é ser DJ, quais as responsabilidades de um DJ, o que é o ofício de um DJ... E toda essa parte do compromisso e do respeito que o hip hop tem, né? Esse rolê.”
Depois de se despedir do seu primeiro professor Dayeh não se deu por satisfeita, foi aí que se tornou aluna do DJ B8, esse sim, mas consolidado com o estilo voltada ao público “Com ele eu já cheguei sabendo o básico, mas foi ele que me ensinou sobre sentir a pista, a como lidar com contratante, como estruturar um set”.
O primeiro set de Dayeh veio apenas depois de 6 meses só estudando e foi, naturalmente, de rap. Começou tocando em eventos pequenos, ligados à cultura de rua, como encontros de pixadores, campeonatos de skate e festas nas periferias de São Paulo. Um dos momentos marcantes desse início foi quando se apresentou no Arte e Cultura na Kebrada: “Eu comecei a tocar em campeonato de skate, em evento na quebrada... eu cheguei a tocar até no Arte e Cultura na Kebrada. Então tipo assim fui galgando ali, entendeu? Onde dava.”
Mas aí veio a pandemia. E com ela, o silêncio dos bailes. Dayeh ficou quase dois anos sem tocar, e se recusou a participar de eventos clandestinos. Foi nesse período que, trancada em casa, começou a gravar vídeos no Instagram, com sets rápidos, misturando trap, funk antigo e viradas que mostravam, de certa forma, que ela era capaz de tocar de tudo. Isso chamou atenção, não só dela.
“Comecei a fazer uns vídeos lá no meu quarto, tocando, fazendo várias viradas de trap, de funk antigo, de vários tipos de música, pra mostrar que tipo assim, sei tocar de tudo. Dez viradas em cinco minutinhos pompom tal tal tal tal... foi nessa época que eu vi, pela primeira vez, já vi muita gente me conheceu.”
Um desses vídeos chegou até um contratante de uma balada chamada AMATA . O convite surgiu de forma informal, quase como uma promessa entre amigos. “Ele me viu tocando e falou: ‘mano, quando você vai vir tocar com nóis?’ Eu falei: ‘quando tomar duas doses de vacina, fi!’ E aí não deu outra: no dia que eu postei a foto tomando a vacina, ele falou: ‘bora marcar a data, já tá ligado’.”
A volta às pistas, no entanto, trouxe um choque de realidade. O cenário do rap underground havia desaparecido. As festas menores tinham quebrado, e os poucos espaços que restaram pediam outra coisa.
“Na volta da pandemia já tinha o Mandela, e ninguém mais tocava boombap, tipo assim, não existe mais você contratar um DJ pra tocar boombap. Não tem mais rolê independente, underground, porque todo mundo faliu. Então tipo assim, ou toca trap, ou toca funk, ou você não toca, tá ligado?”
A escolha não foi fácil, mas foi clara. Dayeh nunca gostou de trap, disse isso sem rodeios. Já o funk, ela carregava desde sempre. “Eu prefiro migrar de vez pro funk do que ficar no hip hop fazendo um bagulho que eu não gosto, tá ligado? Porque o funk eu gosto, me identifico, sou funkeira desde sempre.”
Foi nessa virada, depois da pandemia, que ela abraçou o novo caminho com convicção. Passou a fechar festas só de funk e, durante um bom tempo, foi uma das poucas DJs tocando Mandela nas pistas. “Foi um período difícil do Mandela, esses primeiros dois anos depois da pandemia... basicamente eu, a Bonekinha Iraquiana, o Caio Prince e o Muzão éramos os únicos DJs que tocavam.”
O terreno da bruxaria
Se no começo o funk de pista com estética de quebrada já encontrava barreiras, quando Dayeh e seus parceiros começaram a tocar bruxaria – vertente mais barulhenta, ruidosa e cheia de aparatos estéticos que remetem ao horror no funk –, a recepção beirava o desprezo. “A gente [Dayeh, Bonekinha, Caio Prince e Mu540] éramos os únicos que tocavam Mandela nesse nicho de baladinha de playboy, tá ligado... tirando isso, Mandela tocava só na favela. E não é síndrome de pioneirismo nem nada assim, é só para dimensionar a treta que era tocar bruxaria nesses locais tá ligado? Porque tipo assim, ninguém tocava, o público não gostava, os contratantes não gostavam... todo mundo ficava: ‘meu, mas não tem como você tocar um funk mais conhecido? Não tem como você tocar aquele lá do TikTok?’”
A bruxaria ainda era vista como um “canal” estranho dentro da cena. Em festas como a AMATA, na Lions, no meio da Vila Madalena, ela e os colegas eram recebidos como esquisitos. Ainda hoje, ela diz, há resistência.
“Ficou todo mundo tipo: ‘que porra é essa?’ Até hoje tem lugar que a gente tem muita dificuldade de passar. Imagina nessa época, três anos, quatro anos atrás...”
Foi o Mu540 quem ajudou a mudar o jogo. Já consolidado, ele começou a tocar bruxaria e a legitimar o som. “O Muzão foi uma pessoa que ajudou muito a validar o que a gente fazia, sabe? Porque o Muzão já era o Muzão, já era estourado, já morava em São Paulo, tocava aqui... Aí tanto contratante quanto público olhava o Muzão tocando bruxaria e falava: ‘eu não gosto, mas ele tá tocando, tem um motivo, tá ligado?’”
Foi nessa época, em 2022, que Dayeh começou a produzir suas próprias músicas. No início, observava mais do que criava. Em 2023, no Carnaval, lançou o primeiro som feito inteiramente por ela. Depois disso, vieram os singles e então, o primeiro EP. “Foi meu primeiro EP. Eu convidei muita gente, são 25 pessoas... como foi o meu primeiro EP, eu acho que tipo... as pessoas entravam pra me ver ali, pra ver o meu Spotify, olhava... a gente tende a ir direto no projeto, né? E não ficar olhando: ‘a pessoa tem 200 singles’. E um projeto... você vai no projeto, tá ligado?”
Apesar de assinar toda a produção, sentia que o trabalho dizia mais da cena do que dela mesma. Foi aí que surgiu o desejo de criar algo totalmente autoral, em essência. “Eu queria fazer um bagulho que fosse eu, que fosse 100% eu.”
O remix, a nostalgia e uma nova Dayeh.
Apaixonada por remix desde o início, foi justamente essa estética que guiou sua entrada de vez na produção musical. A ideia era simples: fazer versões atualizadas das músicas que queria tocar, porque depender de outros produtores para isso a limitava artisticamente. “Sempre o meu babado foi remix. Eu comecei a produzir pra fazer remix, tá ligado? Pra pegar músicas que eu já gostava, que eu queria tocar na pista, mas que o beat tava desatualizado. [...] Eu ficava dependendo que outros DJs fizessem o remix que eu gostasse, pra eu poder baixar... Aí falei: ‘não, vou aprender a produzir e vou fazer’.”
Foi nesse percurso que a relação com a produtora KondZilla se consolidou. Ainda nos primeiros passos como beatmaker, ela teve acesso livre ao estúdio, com espaço para aprender, errar e testar.
Desde que eu comecei a aprender a produzir, a Konde sempre abriu esse espaço pra mim, pra eu ficar lá no estúdio aprendendo, treinando, sem compromisso, sem contrato, sem nada, tá ligado? Foi um lugar que me ajudou muito a aprender.
A conexão com o funk de 2015, da sua adolescência, também reverbera em seu som. As referências de pista vêm da favela, mas com memória afetiva e visão de futuro e um desejo pessoal de reimaginar muitos desses sons que fizeram parte da sua trajetória, como funkeira.
“2015 eu tava no terceiro ano do colegial, gente. Foi o momento pra mim ali, de viver aquilo. Muito nostálgica. É a minha adolescência, de fato, é só na favela.”
Depois de estrear como produtora no EP colaborativo da Tropa do Bruxo, intitulado De Rolê na 011 Mixtape, Dayeh sentia que ainda não tinha entregue uma obra que fosse, de fato, sua cara. Queria ir além da coletividade: fazer um álbum inteiro sozinha, com controle criativo total e com todas as ferramentas que precisava para realizar uma antiga vontade: criar um projeto de remixes com a mesma energia dos sons que marcaram sua adolescência. Foi aí que surgiu o Relíkias da Kond.
“Como é o meu primeiro álbum, eu queria que fosse uma coisa 100% da minha cara. Eu quero produzir sozinha e eu quero ter autorização pra usar o beat da música, as vozes, e pra colocar a Bibi Drak pra fazer a resposta.”
A ideia de fazer “respostas” para músicas antigas era um desejo de Dayeh que permanecia com o passar dos anos. Antes mesmo de tocar em festas, ela e sua amiga Rebeca já sonhavam com isso, sentadas na porta da faculdade, vendo vídeos das minas que faziam versões femininas das letras.
“A gente criava as nossas paródias, e era tipo babado. Eu falava: ‘meu, eu preciso de uma mina que venha fazendo isso’… mas tem que ser alguém que viveu aquilo também, tá ligado?”
Foi por isso que a escolha da MC Bibi Drak foi certeira. Para Dayeh, não bastava ter flow; era preciso ter vivência, memória de baile, e a capacidade de traduzir aquela época numa voz feminina que fugisse do estereótipo hipersexualizado. “Uma coisa malokeira, menos erotizada, sabe? Tipo, a letra erotizada, mas a imagem não. Então acho que isso é muito legal.”
Para viabilizar o álbum, ela propôs o projeto à KondZilla, que topou, e mais, disponibilizou para ela o catálogo completo de fonogramas da produtora, com autorização para remixar o que quisesse. Mas havia uma limitação importante.
Gente, eu não sou burra. É óbvio que se eu pudesse, eu ia fazer ‘Bum Bum Tam Tam’, que é o maior hit do funk no mundo. Mas essa música não é da KondZilla, a Kondzilla só fez o clipe. [...] Eu só posso fazer os remixes das músicas que foram gravadas e feitas dentro da KondZilla, que o fonograma é da KondZilla. Não é do GW, não é do R7, não é do MC Dede...
Com o catálogo em mãos, Dayeh fez uma curadoria que equilibrasse afetividade, contemporaneidade e pista. A seleção priorizou faixas que representassem bem a época em que foram lançadas, mas que também funcionassem hoje nos bailes: “Não dá pra trazer uma música do MC Fulano que hoje em dia já foi cancelado, ou que já não tem mais nada a ver. Não é o jeito que o cara rima hoje que pega na pista.”
O projeto, segundo ela, é feito para DJs. Ela mesma pensou em cada faixa como se fosse uma resposta àquela velha frustração: não encontrar remixes bons o suficiente para tocar. “Foi essa a meta: fazer um álbum que eu queria que algum DJ fizesse e me mandasse, tá ligado?”
Na seleção final, três das músicas escolhidas são do MC Dede, algo que aconteceu naturalmente, segundo Dayeh. Para ela, Dede é um artista que sempre equilibrou letras explícitas com lirismo e respeito.
Essa música [“Vai Atrás de Mim No Fluxo”] que ele fala assim: se ela não gozar, eu não gozo. Sabe? Uma putaria romântica, mas muito bem escrita, com uma lírica muito boa. Isso é uma coisa que tem faltado no Mandela.
Funk e a truculência do Estado
Outra faixa escolhida foi “Aonde Nós Chegou”. Dayeh acredita que é hora de ressignificar a música à luz do momento atual do funk, ou seja, mais denso, povoado por infinitos artistas e infinitas possibilidades de criação, mais urgente, mais político. Se no passado ela celebrava a chegada de um novo lugar social para os MCs, hoje ela evidencia o quanto essa conquista gerou respostas conservadoras e violentas do Estado.
[…] CPI dos pancadões, privatização do funk, saca? A gente chegou num lugar tão grande, mas tão grande, que os caras estão fazendo um projeto federal pra privatizar o funk... pra excluir a população periférica, a população preta do funk e deixar o funk uma coisa de gringo, de rico.
O funk, nesse sentido, virou ativo estratégico. Subiu no palanque da política, da moda, da publicidade, mas foi retirado das ruas onde nasceu. O que Dayeh vê é um deslocamento violento: uma tentativa de mercantilizar algo que sempre foi linguagem popular, coletiva e marginal. “Não vai ter baile, não vai ter funk em evento da prefeitura... funk agora vai ser caro de consumir, porque dá dinheiro. Tem um projeto de Estado pra controlar, saca? Pra controlar o dinheiro que entra e que sai.”, diz ela.
A escolha de incluir essa faixa no álbum, portanto, é também um gesto de enfrentamento. De reafirmação. Ela quer que o público pare e pense. Que perceba que o funk, além de corpo e pista, é também história, disputa e memória coletiva de um passado que não é distante, e que é inviável e sem sentido ser deixado de lado.
Essa música é muito legal pra gente ouvir e ficar feliz... mas no momento que tá, a gente não ouve e fica feliz, a gente fica reflexiva, a gente fica pensativo. [...] Quando eu ouço ela, começo a imaginar como se viessem vários flashes na minha cabeça, de conquistas do funk e de tragédias do funk.
A expansão do funk, os benefícios e os malefícios.
Ao mesmo tempo, enquanto o funk vira pauta global, seja com Kanye West ou Beyoncé usando beats em suas músicas, ou Rihanna trazendo o som para sua icônica apresentação no intervalo do Super Bowl, Dayeh sente que essa projeção vem deslocada de quem está realmente na linha de frente da criação. “Tem as gravadoras que estão privatizando e usando os beats, as acapellas, pra fazer fonte, uma coisa... que desvia o foco de quem realmente tá lá, fazendo.”
Mas, como tudo que se torna rentável, o funk foi apropriado. E ela não romantiza nem demoniza esse processo: “A indústria vai se apropriar. A partir do momento que o funk começa a ser rentável, ele começa a valer pra indústria. [...] Ele vira mercadoria.”
Ela evita entrar em polêmicas públicas, mas deixa claro que sua posição é crítica, sem ser ressentida. Deixando claro que esse processo tem ganhas e perdas. Lembra de um amigo estudioso que, ainda no início da bruxaria, reconheceu no som dela algo que se assemelhava ao funk mais experimental do passado, quando o gênero era puro ruído, tensão e invenção. “Ao invés de ficar lutando com o brazilian phonk, acho que a gente tem que lutar para dar o nome certo. [...] Os gringos podem nos contratar porque acham que a gente faz brazilian phonk, mas chegando lá, a gente vai falar que o nome é bruxaria, é Mandela... O mundo todo sabe pronunciar Mandela!”, exclama.
Com os gringos tentando batizar o som com nomes como HyperFunk ou Brazilian Phonk, Dayeh insiste na importância de manter os nomes que vêm da quebrada, resistir às tentativas de suavizar, esterilizar e exportar a estética sem as vivências que a fundaram: “Esse bagulho do HyperFunk... veio o Brazilian Phonk, que foi só uma substituição. Mais uma tentativa de dar nome a uma coisa. E a gente tem que lutar pelo nosso nome.”
A Socióloga do funk?
Dayeh carrega uma bagagem que nem sempre está visível nas pistas: a da sociologia do trabalho, área em que se pós-graduou antes de viver integralmente da música: “Gente, eu sou formada, pós-graduada em Ciências Sociais, com especialização em sociologia do trabalho...”. E embora ela evite se apresentar publicamente como “a socióloga do funk”, é inevitável que essa lente atravesse sua trajetória. Desde a curadoria das faixas até as conversas sobre o futuro do gênero, tudo nela carrega essa inquietação crítica, essa atenção aos movimentos do capital, da cultura e das estruturas sociais.
“O capital, ele sempre vai encontrar formas de se apropriar de tudo. [...] O funk tá virando neoliberal? A gente vive numa sociedade neoliberal. A gente não tá fora dela.”, comenta após analisar friamente e fazer um balanço certeiro de como o funk vem sendo tratado, usurpado ou oferecido a agentes internos e estrangeiros com interessantes limitantes no ponto de vista cultural e econômico.
Dayeh, então, fala sobre a diferença entre criminalizar e rentabilizar. Se antes o funk era visto como crime, hoje é visto como produto. Mas isso, segundo ela, não é um avanço automático. É apenas a troca da repressão pelo controle.
A grande diferença da repressão que tá tendo hoje... é esse teor econômico. Eles não querem mais criminalizar o funk, eles querem vender. [...] E se o que é nosso tá sendo vendido e comprado, é porque tem dos nossos vendendo também.
É nesse ponto que sua formação aparece com mais nitidez. Não como um discurso panfletário ou militante, mas como uma análise de quem vive a prática e observa os atravessamentos com nitidez. “Eu não sou militante, eu sou socióloga. Uma coisa não tem nada a ver com a outra”. E, mesmo assim, ela transforma esse saber em estratégia, em construção. Dayeh sabe que para abrir espaço para outras mulheres no estúdio, na produção e na performance, ela precisou se inserir onde muitas vezes não queria estar.
Pra eu conseguir esse espaço, pra trazer outras pessoas, eu precisei abdicar de muita coisa que eu acreditava. Estar em lugares com pessoas que eu não queria estar.
Ela entende o mercado, mas não o aceita de olhos fechados. Sabe que o “mercado do funk” ainda é majoritariamente masculino, e muitas vezes hostil para mulheres que querem falar livremente sobre corpo, sexo, vivência.
Não adianta eu chegar, nem sei produzir direito, não tenho estúdio, e falar: ‘só vou produzir com mulher’. Só tem eu de mulher. Não dá. Não dá pra levar três mina, elas chegarem e se sentirem à vontade pra gravar, falar o que quiserem... porque é dentro da estrutura dos cara, entendeu?
Relíkias da Kond – enfrentamento
Por isso, Dayeh negocia, resiste e articula. Um passo de cada vez, para consolidar seu espaço e abrir caminho para outras. Ela sabe que ainda representa um nicho, e se reconhece nele com orgulho. A bruxaria, subgênero do funk paulista do qual faz parte, ainda está distante do mainstream. Mas não é por falta de relevância artística. É uma questão de alcance: “A gente tem o nosso rolê. Mas assim... não chega nem perto de subcelebridade. É pouquíssima coisa perto do tamanho do funk.”
Foi na faculdade que ela começou a entender como o jogo funciona. Sua monografia no curso de Ciências Sociais tratava da precarização do trabalho dos MCs. Estudou direitos digitais, modelos de distribuição e os efeitos das plataformas sobre a música periférica. Essa leitura de estrutura é o que orienta hoje suas estratégias: a escolha das músicas, a hora de falar ou se calar, o que pode ser exigido agora e o que é melhor guardar para depois.
No novo álbum, Relikias da Kond, Dayeh fez questão de costurar essas camadas, ou seja, o funk que ela ama, a bruxaria que a formou, as vozes que dialogam com o seu tempo, tudo sob o olhar de quem reconhece o alcance do próprio som, mas quer ir além sem trair suas bases. “No momento, a minha intenção não é ser mainstream. Ser mainstream é consequência. Dinheiro é consequência do trabalho.” Ela quer algo mais concreto. Quer relevância. Não só dentro da bruxaria, mas dentro do funk. Da sua bolha para outras: “Todo mundo da bruxaria já me conhece. Agora eu quero relevância para fora do meu nicho.”
Essa movimentação diz muito sobre o novo momento da DJ. Se por um lado ela reconhece que a bruxaria se aproxima da música eletrônica e se distancia dos bailes de favela, por outro, ela busca religar esses mundos com consciência e estratégia.
A bruxaria hoje não tá mais no fone de ouvido do favelado. E eu não tô dizendo que isso é ruim. Mas é preciso reconhecer.
Para Dayeh, mais do que furar a bolha, é entender que cada escolha – estética, técnica ou política – tem um efeito prático. E é nesse tensionamento que ela constrói sua obra.
O interessante disso, é que quando Dayeh fala do passado, não há saudosismo: havia precariedade, pouco espaço e muita resistência. Ela e a Bonekinha Iraquiana, por exemplo, cobravam R$ 200 para tocar 4 horas numa festa. Era o tempo em que a Submundo nem tinha nome, em que quase ninguém conhecia suas músicas. Mas era também o tempo do baile, do chão da favela, da construção de base.
“Quanto mais se separou da periferia, mais dinheiro começou a entrar”, conta como se quem precisasse colocar os pingos nos is.
O funk e a música eletrônica
É com esse distanciamento que ela se preocupa. A entrada do bruxaria em festas de música eletrônica, inclusive na Europa. É uma conquista, mas não pode ser confundida com ponto de chegada. “A gente vai conquistar o mundo por meio da música eletrônica... foda! Mas tem que tomar cuidado. Porque é nessa hora que a gente abandona a base”. Ela não romantiza o funk também. Fala com clareza da masculinidade tóxica presente, da falta de protagonismo para mulheres, pessoas trans e LGBTQIA+.
“O funk é muito hétero. Hétero e cis, tá ligado?”
Foi o circuito da música eletrônica que permitiu mais diversidade, mas não é esse o único espaço onde o funk deve existir. Para ela, o funk precisa continuar sendo ouvido por quem o criou. E isso exige presença física, política, comunitária.
Pró-atividade
Mais que tocar, Dayeh pensa em devolver. Participa de reuniões com parlamentares, articula frentes de defesa do funk, pensa políticas públicas e comunitárias. “Como eu explico pros meus fãs gays que eles têm que pular na bala por um movimento que nem é daora com eles?”
A resposta, ela acredita, está no pertencimento. Fazer o funk circular sem que ele perca o vínculo com sua origem. Para isso, acredita menos em tweet, mais em rua: “Cansei de ficar debatendo com gente que não entende nada na internet. Foda-se. A partir de agora a gente vai fazer na rua.”
Dessa busca por contato e tensão com a realidade do gênero surge o Estoura Caixa, festa idealizada por Dayeh e a DJ Bonekinha Iraquiana, que veio ao mundo como uma forma de homenagear os DJs de bruxaria e devolver à base um pouco do que lhes é devido, seu significado logo se expandiu. A festa não era apenas um palco: era corre, era manifesto, era pedagogia do encontro. Dayeh define o projeto como um “intermediário social”, uma experiência de atravessamentos entre públicos. De um lado, a audiência queer, clubber e underground que acompanha Dayeh nas pistas e redes sociais. Do outro, os DJs da base do funk paulista, que inspiram seu set, mas que muitas vezes não têm acesso ao público que dança e viraliza seus beats.
“Nossos fãs só gostam da gente por causa das músicas que a gente toca”, diz, com precisão cirúrgica. “E essas músicas são feitas por DJs que nem sabem que nosso público existe e vice-versa.” A lógica é rápida e prática: por que não criar um espaço onde essas pontas se encontrassem?
A resposta à pergunta anterior: “o que acontece quando esses mundos se encontram?” veio rápido. Gente na pista, gritando verso por verso, emocionada ao conhecer os produtores das faixas que sempre dançaram na versão remixada, no SoundCloud ou em festas como a Mamba Negra. “É ali que a mágica acontece”, resume Dayeh. “Quando o DJ da quebrada, que nunca saiu da favela, percebe que tem gente fora daquele circuito que ama o que ele faz. E mais: que esse povo paga ingresso, que valoriza, que canta.”
Esse movimento de aproximação é mais do que político, pra ela é estratégico. Ele descentraliza o eixo que historicamente limita os trajetos do funk, rompe com a ideia de que só há dois caminhos possíveis: ou a favela ou a produtora. “O que a gente quer mostrar é que existe um terceiro caminho: o independente, o autogerido, o colaborativo, o fora dos esquemas.”
Essa aproximação entre o funk e o universo da música eletrônica é algo que ela, apesar dos pesares, enxerga como oportunidade, uma grande possibilidade de expansão e sobrevivência da cena. O alerta, no entanto, está na forma como essa ponte é construída. “Tem que ter responsabilidade. Tem que voltar para a base. Se não, a gente perde tudo.”
O maior risco, segundo ela, é o da separação total entre a bruxaria e o funk. “Quando a bruxaria para de tocar no baile, quando ela só toca em clube, em festival gringo, a gente deixa de ser funk. A gente vira outra coisa. A gente perde o que construiu.”
Qual é o tamanho do funk?
Dayeh é categórica nisso, e na entrevista mostrou clareza: ela não é clubber. Ela é funkeira. Foi o funk que a formou, que a moldou, que a levou à Mamba Negra, ao Boiler Room, à Europa. “Se não fosse o funk, eu não estaria aqui.” E é por isso que insiste tanto em manter um pé em cada lugar, mesmo que isso signifique tocar em CDJs, aprender novos formatos, frequentar reuniões com gente que não entende o que é Baile, o que é Mandela, o que é base.
“Funk é gigante”, ela repete. Um infinito de possibilidades, de histórias, de estéticas, de vivências. Um gênero que mobiliza milhões, mas que ainda carrega as marcas da criminalização e da desigualdade estrutural. “Se não tiver o underground para sustentar essa pirâmide, quem vai sustentar?, indaga.
A fala é urgente. Se a base não se vê representada, se não se sente pertencente ao movimento que ajudou a construir, todo o edifício desmorona. “Você acha que o Hariel vai poder falar alguma coisa? Que o Ryan vai? Que o IG vai sair do conforto dele pra puxar um bonde?”, pergunta, retoricamente. “Não vai. Se não for a gente, quem vai ser?”
A firmeza de quem sabe o que está criando, o que está mudando e quem está impactando
É por isso que Dayeh, mais do que falar, toma diariamente ações e mostra que projetos como o apontado anteriormente, Estoura Caixa, é mais do que uma festa, é uma ponte. Uma ideia radical de intersecção real entre quebrada e pista, entre favela e clube, entre DJs cis héteros do Mandela e travestis protagonistas do som que se expande por todo o país e pelo mundo.
A gente vai levar o Léo da 17 pra ver travesti tocando. Vai levar a equipe de todos os caras pra ver, pra tocar pra travesti. Pra tocar pra um monte de gente que eles nunca nem viram fora de situação de vulnerabilidade, porque ainda hoje, pra muitos dos moleques do Mandela, a única mulher trans que conheceram foi uma travesti jogada na rua, na miséria.
Ficamos atônitos. A entrevista se encerra, e dizemos que mais do que perguntas e respostas, foi uma aula. Aula de funk, de história, de cultura e de política. Aula sobre como não se faz movimentos sozinho, mas com coragem, visão, DJ set e base. Dayeh agradece, dá risada, diz que vai postar no story, promete que a próxima conversa será presencial. Mas de uma coisa não há dúvida: o que ela vem fazendo, com o funk, o remix, a coragem e com conexão, já passou do status de fala.